Em 1992, a República Dominicana sediou o 1º Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-Caribenhas, que reuniu grupos feministas negros de 32 países – incluindo representantes brasileiros. O que começou como um evento para dar visibilidade à luta das mulheres negras contra opressão de gênero, exploração e racismo em terras latino-americanas resultou na criação de uma data extremamente importante: o dia 25 de julho passou a ser reconhecido como Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.
Em 2014, o Brasil estabeleceu que, nesta mesma data, seria celebrado o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, que compartilha os mesmos objetivos da data criada em 1992. Tereza de Benguela é um dos maiores símbolos de resistência do País: líder do Quilombo de Quaritê, no Mato Grosso, ela ajudou a proteger mais de 100 pessoas negras indígenas a fugir da escravidão no século 18.
Mesmo após ouvir opiniões de que eventos não deixavam legados, Jaqueline Fernandes, especialista em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça e em Estudos Afro Latino Americanos e Caribenhos, tinha o desejo de criar algo para marcar o dia 25 de julho, que reverberasse as denúncias relacionadas a situação da mulher negra na América Latina e, ao mesmo tempo, celebrasse suas potências artísticas e intelectuais.
Assim nasceu, em 2007, o Festival Latinidades, que celebra o fazer cultural de mulheres negras e indígenas em um evento que reúne shows, gastronomia, literatura e exposições. Na edição deste ano, que aconteceu no sábado (23.07), subiram ao palco nomes como MC Carol, DJ Lumena Aleluia, Nduduzo Siba, da África do Sul, Veeby, de Camarões, Malika Tirolien, de Guadalupe, Luedji Luna, entre outros.
O evento resultou na criação do Instituto Afrolatinas, presidido por Jaqueline Fernandes. A organização de mulheres negras desenvolve ações transversais no mundo da arte, cultura e educomunicação, fortalecendo saberes de diferentes origens. “Nossa história é coletiva, e a construção desse sonho não poderia ser de outra maneira. Assim nos movemos”, afirma Jaqueline.
Neste ano, o Instituto Latinidades também apresenta a Casa Afrolatinas, que Jaqueline descreve como “um laboratório vivo e dinâmico de inovação e impacto social que foca nas artes, na cultura e na educação como pilares para o desenvolvimento humano, social e econômico”, localizada em Varjão, comunidade periférica do Distrito Federal.
Para celebrar esta data, leia a entrevista com Jaqueline Fernandes na íntegra:
Harper’s Bazaar – Como surgiu a ideia de criar o Festival Latinidades? Qual era seu principal objetivo com o projeto?
Jaqueline Fernandes – Sempre ouvi as pessoas dizendo que evento é “vento”, de uma forma pejorativa, como se fosse algo que não deixasse nada, que não deixasse legado. As pessoas dizem “por que envolver tantos recursos e gastos para algo que é tão passageiro como um evento?”. Eu acho que evento é “vento”, sim, porque ele espalha, porque ele comunica, porque ele tira as coisas do lugar e transforma. Nessa perspectiva, fiquei muito provocada pelo fato de ser justamente num evento a elaboração de uma data como essa.
Em 2007, era uma pauta ainda quase que completamente desconhecida para a maior parte das pessoas, claro que eu diga a maior parte porque existia uma rede que inclusive participou da construção desse evento em 1992. A gente teve uma Delegação do Brasil, tiveram mulheres de organizações importantes como Geledés, Instituto Odara, Crioula, que fizeram parte disso, então essas organizações já vinham pautando a data. Assim, fiquei com muito desejo de criar algo em torno do 25 de julho para reverberar as denúncias relacionadas a situação da mulher negra na América Latina mas também, ao mesmo tempo, celebrar as potências e as nossas capacidades artísticas, intelectuais e os nossos fazeres.
Quando o Latinidades chega, ele quer, ao mesmo tempo, popularizar esta data e marcar o Distrito Federal com uma rota de eventos de cultura negra, mostrar que aqui a gente tem uma população negra de 58% majoritária que é invisibilizada dentro e fora da capital.
Como serão as celebrações de 15 anos do festival?
Vão ser capturadas imagens e vídeos de toda a programação para a produção de um documentário. Durante o evento, lançaremos um livro dos 15 anos do Festival, em Português, Espanhol, Inglês e em Braille. Além do aniversário, é o momento da retomada, depois de dois anos online, vamos ocupar o Museu Nacional de Brasília.
Quais são os destaques do Instituto Afrolatinas
A grande novidade da edição de 2021 foi a inauguração da Casa Afrolatinas. A Casa Afrolatinas é uma central criativa, um espaço de trocas, intercâmbios culturais e experimentação de tecnologias. Um laboratório vivo e dinâmico de inovação e impacto social que foca nas artes, na cultura e na educação como pilares para o desenvolvimento humano, social e econômico. Assim como o Festival Latinidades, a Casa Afrolatinas nasceu para ser um espaço ativador de encontros, encantos, formações e oportunidades. Uma casa de mulheres negras latino-americanas e caribenhas. Uma casa de afetos. Uma mostra de nossas cores, sabores, saberes e fazeres. Nosso sonho de ter uma casa coletiva ao longo de todo o ano encontrou lugar no Varjão, comunidade periférica, no Distrito Federal, com uma população de 80% de pessoas negras. Nossa história é coletiva, e a construção desse sonho não poderia ser de outra maneira. Assim nos movemos.
Como é seu trabalho no Instituto? Quais são os principais projetos?
O festival Latinidades sempre foi o carro-chefe. Ele dá origem ao Instituto. Hoje temos também a Casa Afrolatinas, estou também trabalhando no nosso selo, por onde estamos lançando a publicação “Memórias e Utopias de Mulheres Negras”, no dia 24 de julho e no documentário “Afrolatinas”, que vai contar um pouco da história do Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.
Qual a principal simbologia do Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha?
É essencial termos esse dia como marco da nossa luta. O meu primeiro contato com a existência de um dia da Mulher Afro-Latina-Americana e Caribenha foi no início de 2007, quando fazia parte do Fórum de Mulheres Negras do Distrito Federal. Chegou até mim a informação de que mulheres negras se reuniram na República Dominicana e que esse encontro originou a criação da rede de mulheres afro latino-americanas e afro-caribenhas e também do dia 25 de julho. Como produtora cultural, fiquei encantada com a ideia de um evento propor um marco tão significativo quanto a criação do dia da mulher negra.
Como foi o processo para conseguir que a data se tornasse lei? Quais dificuldades foram encontradas ao longo do caminho?
Foi um longo processo de luta coletiva dos movimentos de mulheres negras. Essa é uma das histórias cujos lados e protagonistas pretendemos esmiuçar, para contar no documentário que estamos pré-produzindo. Certamente essa luta começou muito antes de nós, Afrolatinas.
Como a data pode inspirar a representatividade da mulher negra latino-americana?
Tenho citado muito Vilma Reis, quando ela fala que “o movimento de mulheres negras é um movimento social mais bem-sucedido no Brasil”, no sentido de que ele “empurra a esquerda mais para a esquerda”, ele pauta tudo aquilo que é importante olhar, incidir e transformar na sociedade e a data marca e ajuda fortemente este movimento. Acredito que esse movimento de mulheres negras nos próximos anos vai crescer grandemente e que ele vai se juntar com movimentos de mulheres indígenas, que a gente vai poder falar daquilo que Lélia Gonzalez já ensinava pra gente, que é a nossa “Améfrica Ladina”, considerando as nossas especificidades, considerando tudo aquilo que pessoas negras e indígenas puderam construir juntas, acredito que isso se dê de forma cada vez mais unida. A potência das mulheres negras, dos movimentos de mulheres negras na América Latina vai se tornar algo impossível de não considerar cada vez mais e vai vir junto com alianças fortíssimas com as parentas indígenas.
Quais mulheres são inspiração na luta por essa representatividade?
São inúmeras, mas destaco, especialmente, todas as que estão na homenagem “Rosas em Vida”.
Como você enxerga um futuro mais justo para mulheres negras latino-americanas?
É possível visualizar um futuro, ainda distante, com as políticas afirmativas nas universidades, nos meios de comunicação, no mercado de trabalho, em todos os espaços em que nós conseguimos implementá-las, elas são ações reparatórias que fazem parte de um conjunto de políticas afirmativas, mas acho que elas não são a única solução viável para que a gente consiga de fato resolver esse prejuízo histórico que foi colocado em cima das pessoas negras, brasileiras, sobretudo das mulheres negras.
Precisamos de fato ampliar essas ações afirmativas e que elas sejam um conjunto de ações. As cotas foram uma delas importantíssimas, que precisam continuar porque dez anos não dão conta de mais de 500 desse sistema escravocrata que ainda vem sendo perpetuado no Brasil.