Guil Blanche é CEO da Planta.Inc., especializada na aquisição e requalificação com mudança de uso de prédios dos anos 1950 e 1960 na região central. Gustavo Cedroni é sócio da Metro Arquitetos Associados e responsável pelo retrofit do Edifício Renata Sampaio Ferreira, projetado pelo arquiteto Oswaldo Bratke e destino escolhido para a celebração do novo projeto editorial da Harper’s Bazaar Brasil.
Amigos de muitas histórias, Blanche e Cedroni ampliam projetos que modernizam o Centro de São Paulo, promovendo diversidade social e cultural. Bazaar convidou o empresário e o arquiteto para uma conversa. Leia a íntegra:
Gustavo Cedroni: Nossa amizade teve sua fundação na pandemia. O que aprendeu com aqueles anos recentes?
Guil Blanche: A pandemia é fruto da humanidade tomar espaços que não cabem a ela, tratar a natureza com desrespeito, e agir de maneira exploratória, sem sustentabilidade. Se continuar, como é sabido, o planeta vai acabar. Tenho um olhar sistêmico, acho que eventos acontecem e devemos entender o motivo e pensar nas consequências. A pandemia pode ter sido um aviso.
GC: Essa sociedade do consumo, de repente, foi obrigada a se isolar e ficar em um núcleo familiar reduzido. É um contragolpe nessa ideia de que o ser humano pode tudo com dinheiro. É muito significativo…
GB: Houve também uma lição social. Enquanto as pessoas privilegiadas estavam fazendo home office, se protegendo, a grande massa brasileira não parou de trabalhar. A pandemia acentuou ainda mais a desigualdade.
GC: O fato de se isolar em um núcleo é muito perigoso. Impede com que se aprenda, cresça, muitas vezes perca a possibilidade de se frustrar, que é super importante com a negação do outro. O convívio na cidade é muito importante para civilizar. Acho que a ausência da vida na rua naquele período também valorizou o convívio nas cidades.
GB: Apesar de que uma descoberta que se teve trancafiado foi a necessidade de se viver mais o campo. Como tem sido se dividir entre São Paulo e Catuçaba?
GC: A nossa terra lá tem um significado vital. Gosto muito da vida na cidade, da neurose que o centro proporciona, nossos projetos são movidos a isso. É uma característica minha, mas não é saudável. Se tenho pouco trabalho, minha produção cai. No contrário, minha capacidade produtiva entra em progressão geométrica. Sou totalmente viciado nesse modo de vida urbano. Então, Catuçaba vem no sentido de não conseguir produzir lá na mesma proporção. Quando chego, começa um processo de desintoxicação. A relação que eu tenho com o tempo é completamente outra. Um final de semana lá tem uma dimensão gigantesca, que chamo de descansar dos fatos.
GB: No final das contas, é uma higiene mental… Penso que viver mais a natureza também deveria ter nos sensibilizado mais à questão do colapso do meio ambiente que possibilite a vida humana. Em São Paulo, tivemos há pouco a discussão do plano diretor estratégico. Foi impressionante ver as discussões não tratarem diretamente da pauta ambiental. Como você enxerga isso?
GC: Sou muito cético em relação à sustentabilidade. Há um atraso civilizatório em nosso País, que esse tipo de pauta tem que vir junto, e é difícil colocar em uma escala de importância. A pauta social é a mais urgente. Há um caminho a seguir muito anterior, como, por exemplo, que famílias com diferentes faixas de renda vivam no mesmo bairro e desfrutem da mesma infraestrutura. São pautas que têm que andar em paralelo. Se não tomar cuidado, a sustentabilidade dos materiais vira uma pauta da elite.
GB: Essa questão de materiais e tecnologias construtivas, na verdade, pelo menos no contexto do Brasil, é uma sustentabilidade inócua. É o que se chama de greenwashing (maquiagem verde). Não consigo ver solução mais impactante do que o adensamento urbano. As pessoas passam, em média, três horas por dia no trânsito da capital. Se pudessem morar perto do transporte público, ou mesmo perto do trabalho, iriam caminhando. A quantidade de prédios e imóveis vazios permitiria reduzir para pelo menos um terço o déficit habitacional. Ampliar o adensamento, nos moldes que o PDE revisado está promovendo, gerará um impacto ambiental desnecessário. Poderíamos adensar ocupando prédios vazios, principalmente para moradia popular.
GB: No pós-pandemia em Nova York, há ainda 50% de vacância nos escritórios. Fomos juntos fazer pesquisa para o projeto de requalificação do Renata. Penso que virou uma cidade para pessoas muito ricas. Parece que a economia criativa, e as pessoas que sempre fizeram de lá um lugar divertido, foram embora. Como sentiu isso?
GC: Achei tudo exagerado: os preços, as pessoas, a cidade estava muito cheia de gente comprando. Um consumo desenfreado de serviços ou de produtos. Uma velocidade que nunca tinha visto. Além da alta vacância nos prédios com gente legal indo embora, um contrassenso, tem a questão do turismo. Virou um parque de diversões artificial.
GC: Você acha que São Paulo corre esse risco? Porque Londres está assim.
GB: Acredito em metrópoles. Nos Estados Unidos, a juventude criativa foi morar em cidades médias porque as pessoas de 30 anos estavam desistindo de ter filhos. Simplesmente porque a pessoa trabalhava para pagar o aluguel. Mas as cidades médias não têm infraestrutura de transporte porque não justificam o investimento para a densidade de gente. As pessoas acabam usando o carro. Sou um grande entusiasta da vida em cidades densas. NYC é a cidade grande mais sustentável dos EUA. Mas vejo São Paulo em um estágio muito anterior. Se você pensar sobre a Vila Buarque, as pessoas na Av. Brig. Faria Lima ainda têm dúvidas se é um bairro que vai se valorizar, com sustentação para ter gente morando e pagando aluguel. Hoje, qual é o bairro com mais bares e restaurantes legais, que a juventude mais frequenta e onde abrem as marcas de gente criativa? O lugar tem cinco estações de metrô, uma série de instituições culturais, universidades e um grande hospital. Tem algum fundamento para esse lugar não dar certo? NYC e Londres já passaram pela valorização dos bairros centrais, até pesaram a mão nisso. Ficou chato. Pouco diverso.
GB: Você está fazendo quatro prédios com a Planta.Inc. no projeto arquitetônico, consegue garantir essa cidade que a gente acredita?
GC: Não se cria algo da cabeça e sai fazendo. Tem que ter comprometimento com o que outras pessoas desejam. Os prédios já são bons porque tem uma matriz moderna no centro de São Paulo quase única no mundo inteiro. Prédios bem construídos e projetados. Mas a ideia é pensar a beleza da arquitetura como programa. E enxergá-la como ferramenta para um modo de vida mais interessante. E, nesse sentido, promover coisas radicais. Cria-se um programa diverso, de várias tipologias de apartamento no mesmo empreendimento. O térreo sempre faz parte da cidade, nunca é privativo, com serviço conectado à rua. E a capacidade de projetar algo lúdico, a exemplo das piscinas.
GB: Até porque os prédios eram de escritórios. Se você pensar, muitos estavam vazios antes da pandemia e, depois, completamente desocupados. Quando se coloca uma piscina é disruptivo.
GC: Não existe nada mais sustentável na arquitetura do que ocupar prédios abandonados. Porque era um problema e acaba virando solução. O problema do centro é o déficit de pessoas morando, e não trabalhando. Assim, você reativa o comércio, traz segurança, usa a infraestrutura de metrô, táxi e ônibus. Estimula uma área muito propícia para caminhar. É simbólico você reocupar o centro. Deveria ser um gesto de toda a cidade. Porque foi ali que começou, tem séculos de história, e camadas como sociedade. Você sai na rua, vê advogados, prostitutas, empresários, pretos, brancos, imigrantes. Tudo no mesmo lugar. Isso só faz bem pra gente.
GB: Acho tão sem graça quando você vai para um lugar que tá cheio de gente igualzinha. A maior graça é ver gente diferente de você. Para você, justamente, pensar sobre outras formas de vida.
GC: Isso é educador.
GB: E civilizatório, como você bem disse.




