“Até agora eles estavam comandando o meu destino e eu fui, fui, fui, fui recuando, recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta e tão forte quanto eles me imaginam fraca. Quando eles virem invertida a correnteza, quero saber se eles resistem à surpresa, quero ver como eles reagem à ressaca.” (“Gota D’agua” – Chico Buarque de Holanda)
Pela primeira vez em sua história o Brasil terá duas mulheres trans e travesti no Congresso Nacional, como deputadas federais: Erika Hilton (PSOL), eleita pelo Estado de São Paulo, e Duda Salabert (PDT), eleita por Minas Gerais. Esse é um fato histórico e é um indicador de um Brasil que está por vir, um Brasil mais plural e democrático, que segue vivo em nós, mesmo quando nossa democracia se vê sob ataque constante.
Um novo capítulo se abre na história política brasileira, sempre marcada pela exclusão dos mais vulneráveis, pelo silêncio das vozes que vem da margem e pela dominação de um conjunto imenso de elites exclusivistas, que tem, há séculos, usado o poder e visibilidade que possuem para aumentar a história de morte, pobreza e violência que marca nosso país. Quando duas travestis, vindas da base e das ruas, se elegem para a Câmara Federal, percebemos que finalmente, parece se inverter a correnteza.
A primeira transexual brasileira a ser eleita para um cargo parlamentar no Brasil foi Kátia Tapety, na pequena Colônia do Piauí, cidade do interior do estado do Piauí, cerca de 320 km de Teresina. Kátia foi eleita vereadora em 1992, e se manteve como a mais votada por três eleições. Chegou a ser presidente da Câmara Municipal da cidade e também se elegeu vice-prefeita. Em 2018 elegemos Erica Malunguinho, primeira mulher trans a ocupar no Brasil o cargo de deputada estadual, ela foi eleita por São Paulo, também neste pleito foram eleitas, em mandatos coletivos, Erika Hilton, em São Paulo, e Robeyoncé, em Pernambuco. Houve ainda outras pessoas trans e travestis que ocuparam o Parlamento fora das capitais, pelo menos 50, se não me engano. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais – Antra – tem compilado tais dados. Friso os dados acima apenas porque representam as eleições em capitais brasileiras, podemos citar, por exemplo Brenny Briolly, eleita em 2020 vereadora na cidade de Niterói-SP. Ainda em 2020, foram eleitas em capitais a Linda Brasil, mulher trans eleita em Aracaju, e também Erika Hilton, em São Paulo.
O imaginário político brasileiro não comporta um corpo transexual na política. Cada uma destas que antecedem a vitória de Erika Hilton e de Duda Salabert, além das impactantes votações de Robeyonce, em Pernambuco, e de Thabata Pimenta, no Rio Grande do Norte, colaboram para a transformação da noção do que é política no Brasil. Colaboram para a afirmação do espaço da política, como pertencente a outras corporalidades. Frequentemente imaginamos políticos e a política como sendo espaços masculinos, brancos e para homens velhos e nos afastamos, há séculos se constrói e se incentiva no Brasil o afastamento da política, o repúdio, a consideração de que este espaço é sujo e apenas para uns poucos. Com elas conseguimos imaginar prefeitas e governadoras e até uma presidente travesti no Brasil. Uma outra história política se escreve e o momento que vivemos é histórico também por isso.
Muito falamos sobre a crise política brasileira, que se dá e também resulta no aumento do conservadorismo e reacionarismo político, pela eleição de candidaturas de extrema-direita que defendem a regressão de direitos, a exclusão das minorias e a austeridade que tanto aumenta a pobreza. Contudo, nesse cenário é importante notar também que um desejo por uma política mais autêntica, por uma outra forma de fazer política se expressa nas eleições de pessoas trans e travestis. Há um desejo por uma política feita por aqueles que compartilharam conosco o chão da morte, das agruras da existência, da pobreza e da exclusão.
Nada será como antes. Uma vez que mulheres trans, travestis e negras ocupam a política desta forma, nṍs sabemos que, não importa o quanto gritem ou ameacem, não há espaço para o retrocesso, tais acontecimentos não poderão jamais desacontecer. Ocupamos e seguiremos ocupando todos os espaços, seja nas revistas de moda, importante componente do imaginário social e corporal no mundo, seja nos parlamentos, estaremos em todos os lugares.
Seguimos agora para o segundo turno das eleições, que eu espero sejam marcados pela democracia e pelos direitos, contudo, uma disputa pelos brasis que virão se iniciou e teremos de buscar formas de agir. É importante que encontremos, cada um de nós, onde quer que estejamos, formas de nos levantarmos. No parlamento teremos corpos que jamais estiveram lá: negras, trans, indígenas, LGBTs e tantos. Nas ruas e em cada canto é importante que tenhamos o levante destes sujeitos não para defender a democracia, mas para construi-la com todas as disputadas que virão.
Vamos ver!