
Marie-Victoire e Théophile de Bascher (Foto: Divulgação)
Mechas loiras, olhar atento, sorriso quase proibido… difícil pontuar em quê, exatamente, nasce o charme discreto de Marie-Victoire de Bascher. Talvez, um pouco mais para mim que para os distraídos, sejam as nuances de familiaridade e rebeldia escondidas no rosto que, desde a adolescência, estou mais ou menos acostumado a olhar. Seu tio, afinal, é personagem célebre nos autos da moda, além de um ícone de estilo pessoal: Jacques de Bascher, o dândi que seduziu Yves Saint Laurent e conquistou o coração de Karl Lagerfeld ainda nos anos 1970. Por esse motivo, com uma boa porção de amigos em comum, “Emevê” e eu nos conhecemos há alguns anos no Café de l’Époque, coração de Paris, lar da “melhor tarte tatin da cidade” e onde ela me revelou, durante uma tarde, a profundidade de seu universo criativo. Artista, designer, joalheira, ilustradora… faz de tudo um tudo, cheia de personalidade.
Depois do primeiro encontro, os seguintes ficaram raros, vítimas de agendas. E ainda que ela tenha passado uma temporada no Brasil há poucos meses, as interações digitais compõem a maior parte da rotina. Nas redes, Marie compartilha muito de sua aura estética, como as bijoux que criou para a Lemaire, a coleção de lenços para a Delvaux, acessórios para a Lanvin e, mais recentemente, as bananas douradas que giraram cabeças na nova era da Chloé. Sua mais nova empreitada, entretanto, tem uma ambição mais familiar, revelada na Semana de Design em Paris, em setembro. Em uma colaboração inédita com o primo escultor, Théophile de Bascher, criou um tabuleiro de gamão luxuoso com todo o perfume de estilo da dupla.
O projeto começou com um convite de Jeanne Chardin, curadora e idealizadora da exposição GAMMON GAMMON, na capital francesa, que procurou Théo em junho. “Faz tempo que vou ao estúdio da minha prima para trocar ideias sobre design e, como o gamão é um ritual familiar, foi natural que realizássemos isso juntos”, conta, lembrando das noites de jogo na propriedade centenário do clã, o Château de la Berrière, em Nantes. Por esse mesmo motivo, com foco na essência da memória, os primos procuraram os materiais no “jardim da casa” (leia-se bosque do castelo). Um carvalho de três séculos, caído há vinte anos, serviu como a base maciça de 1,7 metro do tabuleiro.
Ao longo do verão (tempo sagrado de férias para os europeus), os dois trabalharam em ritmos e até endereços diferentes. “Foi um fluxo muito moderno, que rendeu risadas e uma coleção engraçada de fotografias”, conta Marie-Victoire. “Quando não estávamos juntos e tínhamos que recorrer às videochamadas, um tomava drinks no meio do Mediterrâneo enquanto o outro movia troncos de 500 quilos no interior da França, escolhia tecidos e materiais de Atenas, buscava pedras em Palermo e ajustava proporções na Île de Ré”.
Para Théophile, que começou a esculpir há cinco anos em pedra e diz que se sentirá completo “apenas quando criar um objeto cuja função seja somente existir”, foi um processo meditativo. Em sua arte, busca se libertar da racionalidade dos objetos, mas admite, sob o bigode, que desenvolveu uma sensibilidade à utilidade em seus estudos na École des Arts Décoratifs. “Tive a certeza de que escultura e design não são entidades distintas quando descobri o trabalho de Isamu Noguchi, em que os objetos têm funções não intencionais”, explica, destacando também o arquiteto brasileiro José Zanine Caldas como inspiração para a mesa de gamão. “Seu lema era nunca derrubar uma árvore, mas dar um segunda vida àquelas que já estavam mortas”.
Em contrapartida, Marie-Victoire tem mais de 15 anos de experiência enquanto criativa em marcas de moda e joalheria, onde já usou e abusou de materiais variados. Para o projeto com o primo, escolheu pedras semipreciosas, como serpentina, quartzo rosa, sodalita e jaspe-dálmata, para dar forma às peças do jogo. “Me lembram doces e isso me encanta muito”, fala, com jeito lúdico, lembrando das partidas que jogou no antigo tabuleiro do tio. “O som que as peças faziam nele era muito suave e, para resgatar isso, trabalhei com um ateliê nos arredores de Paris que fez toda a costura do couro e o veludo”.
Nascido de memórias e com o objetivo de criar ainda mais naqueles que se lançarem a jogar no tabuleiro (Théo admite que a prima sempre vence), a dupla conta que o processo também foi importante na formação de novas lembranças. “Nos reunimos em La Berrière para trabalhar e acabamos tendo noites de maratona de gamão, dança no terraço, brincadeira com corujas e momentos de contemplar o despertar de colmeias.”, termina Marie-Victoire, filosófica. Para Theóphile, o que fica são as risadas.