Entrevistar Ana Flavia Cavalcanti é uma verdadeira maratona de histórias de superação. Atriz, preta e bissexual, aos 40 anos ela fala abertamente de qualquer tema que a instigamos.
Nascida em Eldorado, Diadema, na Grande São Paulo, ela teve uma infância rodeada da família, “A minha família materna é da mesma região, então cresci com meus primos, primas e tios. Me recordo dos almoços na casa da minha avó”, conta, em entrevista à Bazaar.
Personagem da coluna Mulheres que Inspiram, ela fala da sua carreira e muito mais. Leia na íntegra:
Como foi a sua infância?
Eu nasci em Eldorado, Diadema, na Grande São Paulo. Meus pais ficaram casados até eu completar dois anos, então foi uma relação breve a história dos dois. Em Eldorado a gente vivia perto da família. E aí, com seis anos, a minha mãe foi visitar Atibaia e gostou da cidade e resolveu se mudar para lá. No final dos anos 1980, Diadema era considerada a capital com maior índice de homicídio do Brasil, por isso minha mãe também decidiu se mudar de lá. Em Atibaia moramos em um bairro periférico, mas muito menor. Então todas as proporções foram diminuídas. Tive uma infância que eu acho que muitas crianças da periferia têm, que a gente fica meio independente, não tem aqueles adultos por perto de olho na gente o tempo todo. Por um lado, é ruim – você tem que se virar sozinho – mas, por outro, também acho que dá para a gente uma noção muito interessante de viver em coletivo e de estar distante da casa.
Nessa época vivíamos eu, minha irmã e minha mãe, uma trabalhadora doméstica. Valdecir o nome dela, mas ela gosta que a chame de Val. Ela trabalhava de segunda a sexta-feira e sempre foi uma pessoa muito pragmática: os fins de semana eram para a gente passar juntas. Meu pai também nunca ajudou com nada, então ela precisava trabalhar. Mais tarde me mudei para um outro bairro, pois minha mãe achou que ali tinha ficado muito perigoso depois de uma chacina terrível. Nos mudamos para a área rural, mas eu já era pré-adolescente, então foi muito difícil.
Como você se descobriu como atriz?
Com 18 anos eu fui para São Paulo, onde trabalhava em um salão de beleza. Lá eu fiz amizade com um professor de dança que também era ator, e estava prestando a escola de artes dramáticas da USP. Acabei entrando no mundo dele e adorei. Já sabia que queria ser atriz logo cedo. Porém, fora deste espaço, eu não tive muito incentivo para pensar na carreira. Entrei para uma escola de teatro particular, mas estava muito difícil, pois era muito caro. Acabei indo fazer um curso técnico de enfermagem. Eu odiava, mas fiz.
E como você começou na carreira?
Fiz umas fotos com uma amiga que estava estudando cinema e acabei conseguindo alguns testes de publicidade. Peguei três trabalhos seguidos e era uma grana! Peguei todo esse dinheiro e voltei para a escola de teatro, paguei o ano inteiro. Foi então que fui para o grupo teatral de Antunes Filho, onde aprendi muito: lá você pega toda a noção de escrever, de se autodirigir, de pensar o figurino, o cenário e o criar. Em 2010 fui para a França e entrei para o Teatro de Soleil, onde fiquei por cinco meses.
E como foi esta experiência internacional?
A infraestrutura é muito diferente da que temos por aqui. Por exemplo, pensamos em uma cena, se abre um acervo absurdo de figurinos. Tem maestro para musicar, iluminador o tempo todo etc. Mas, por outro lado, aqui no Brasil desenvolvemos recursos e habilidades dentro de um contexto mais desfavorável, o que nos dá um jogo de cintura lindo. Então eu voltei bem orgulhosa de quem somos.
Quais são alguns dos trabalhos que orgulham você na carreira?
“Malhação” com certeza absoluta, porque foi um trabalho muito bonito. Uma personagem linda, heroína, apaixonada pela educação pública. No caso da Dóris, acho que consegui encontrá-la em mim, na minha vida, e vice-versa.
Também gosto muito de “A Baba Quer Passear”, a performance que eu criei. Ela me possibilitou imaginar mundos e entender que eu sou capaz de fazer isso, que eu também sou uma empresa e que eu também posso me produzir.
Por fim, gostei muito de fazer “Sob Pressão”. Achei uma experiência incrível, uma personagem com uma vida muito diferente da minha, em que eu tive que “cavucar” as emoções, aprender sobre a depressão. Foi muito desafiador viver a Diana.
E esse trabalho incrível que você fez na Globo, o “Falas de Orgulho”, da minissérie “Histórias Impossíveis”?
Foi um trabalho muito contemporâneo, conta a história de amor do casal Lena (vivida por Ana Flavia), mulher cisgênero; e sua namorada Kátia (Kika Sena), mulher transgênero. É uma história muito relevante para minha comunidade. Eu sou uma mulher lésbica de saída e depois eu comecei a me apaixonar por homens. Hoje eu me autodeclaro bissexual, então sei para quem eu estou falando. Eu recebi muitas mensagens, principalmente de mulheres, dizendo quão importante é contar uma história assim na TV aberta. A Lena é uma personagem que coloca a nossa cabeça para pensar coisas fora da caixa.
Você fala abertamente sobre sua sexualidade. Como foi este processo para você?
Não tem como deixar de falar do preconceito, claro, mas cresci em um lar sem muitas restrições. Sem a figura do pai, a resistência masculina não existia, e então foi mais leve. Eu comecei a namorar cedo, aos 14 anos já namorava uma mulher. Quando fui morar junto pela primeira vez, contei para minha mãe, e isso foi um pouco difícil, não pela minha orientação sexual, mas pelo medo que ela tinha de que eu pudesse sofrer muita resistência fora de casa. A minha mãe sempre conviveu abertamente com as pessoas com quem eu me relacionei.
Eu não consigo imaginar a minha vida se não for assim, nem me interessa estar em um lugar onde eu não possa ser quem eu sou. Óbvio que tem olhares, comentários machistas, assédio, coisas que fazem com que a gente até evite uma carícia em público. Mas por outro lado eu penso: olha o que eu consegui fazer na TV sobre esse tema!
Sobre ser uma mulher preta no audiovisual brasileiro hoje, você acha que as oportunidades estão aumentando?
Para mim a novela “Vai na Fé” é um divisor de águas nesse País quando o assunto é produção audiovisual, por ter um elenco majoritariamente preto. É muito importante estar na televisão aberta ou no streaming. É uma grande forma de fazermos nossas narrativas e contarmos as nossas histórias.