Pablo Picasso e Tarsila do Amaral dividiram mais do que uma vocação artística. Eram contemporâneos, amigos e habitués dos círculos intelectuais mais nervosos de Paris – e usaram, cada um com seus caprichos, essas referências para expressar suas próprias visões de mundo em movimentos únicos, do cubismo ao modernismo. Foram ícones do frisson estético e da criatividade que moldou a cena da arte no início do século 20, mas dificilmente imaginariam que, cem anos mais tarde, seus herdeiros e descendentes se encontrariam em um novo contexto em comum. Paola Montenegro é brasileira e sobrinha-bisneta de Tarsila. Florian Picasso é vietnamita e bisneto de Pablo. Ambos “caíram” na música e trabalham para dividir o próprio ritmo com o mundo enquanto DJs de noites agitadas. Este é o primeiro encontro deles.
Harper’s Bazaar – Esta, sim, é uma cena artística! (risos) Paola, você está na Espanha, certo?
Paola Montenegro – Sim, em Bilbao! Volto para o Brasil ainda hoje. Antes, passei por Madri e fui ao Museo Reina Sofía, onde está a “Guernica” (1937). Eu nunca a tinha visto de perto. É linda!
Florian Picasso – Sim!
HB – O museu também tem uma obra da Tarsila, não?
PM – Sim. Foi ótimo ver esses dois artistas juntos antes do nosso encontro.
HB – Eu imagino que vocês tenham formas diferentes de lidar com a obra dos seus parentes em comparação com o grande público.
FP – É bem diferente, mas sempre de tirar o fôlego. Na infância, tive a oportunidade de estar muito próximo das pinturas do meu bisavô e isso me ajudou a definir meu próprio gosto e instinto artístico. Hoje, claro, trabalho com música, o que é bem menos visual, mas o mergulho é o mesmo. Imagine, eu podia tocar nas cerâmicas!
HB – E nas pinturas?
FP – Nunca! (risos)
PM – Ah! (risos) Minha família não tem muitas obras da Tarsila no acervo particular. São desenhos, em sua maioria. Crescendo, eu sabia quem ela era, mas sentia uma distância. Foi só em 2019, quando a exposição “Tarsila Popular” (no MASP) reuniu 400 mil pessoas, que eu realmente percebi a magnitude dela. Comecei a estudar arte e trabalhar com esse legado pelo mundo. Hoje, ouvir sobre a relação das pessoas com a obra e falar sobre isso sempre me emociona. Ambas somos mulheres e, no meu trabalho como DJ, percebo muitas semelhanças.
HB – Quais?
PM – A música e a arte não podem ter sentido só para quem faz. Precisa ter para quem ouve e vê. Comecei como DJ aos 19 anos, depois que meu namorado e minha melhor amiga fizeram a mesma coisa. Eu ia às festas e sentia que queria fazer mais do que só curtir. Queria escolher as músicas que as pessoas iriam dançar, sentir a vibe que os DJs sentem. Foi amor à primeira vista.
FP – No meu caso, comecei como DJ aos treze anos, mas pelas razões erradas. Eu era uma criança muito insegura e precisava de atenção. Mais ainda, eu queria ser popular e conquistar garotas. (risos) As primeiras festas que fiz foram no internato, mas eu achava que essa carreira não era para mim. Precisei insistir para descobrir que amava isso. Foi um processo de aprendizado sobre mim mesmo. A arte faz você crescer como pessoa.
HB – E, recentemente, você lançou sua própria gravadora, a DKD Records!
FP – Era algo que eu queria fazer há bastante tempo. É um desdobramento da DEKADANCE, coletivo de arte, música e moda que fundei no ano passado. Está no começo, mas já temos uma faixa de um grande artista com lançamento programado para junho. Minha ideia não é ter milhões de streamings, mas criar uma plataforma genuína para novos talentos.
HB – Ao mesmo tempo, a Paola está tentando equilibrar a vida noturna com a gestão do legado da Tarsila do Amaral, se responsabilizando por autorizar as exposições e o licenciamento de produtos.
PM – Pois é! E não é fácil! (risos) Aliás, ser uma DJ mulher é difícil. No último ano, comecei a ficar um pouco cansada, confesso. Estamos com três exposições sobre a Tarsila ao redor do mundo e, aqui em São Paulo, eu tenho uma festa chamada Zola Dance. Além disso, ainda organizo uma plataforma sobre novidades da cena musical, a “Fala Clubber”.
FP – Isso é incrível! Pessoalmente, tenho menos responsabilidade com o legado da minha família. Sei que isso vai acontecer um dia, mas a preocupação da minha mãe sempre foi de que eu criasse o meu próprio legado. Muita gente não sabe, mas, quando Picasso morreu, ele não deixou testamento. Isso complicou as relações familiares. Como fui adotado ainda muito novo, minha mãe não queria depositar nenhuma dessas expectativas em mim, então me permitiu buscar minhas próprias paixões.
HB – E como está essa busca?
FP – Estou naquele clichê de todo artista, que é viver uma fase. Meu bisavô teve isso com o “período azul” (risos) e a própria Tarsila viveu um momento em Paris. Estou me alimentando bem, bebendo pouco e reunindo personalidades da cena techno. Não gosto de chamar de underground, mas é uma subcultura anticonformista, que desafia as normas e que foi oprimida por muito tempo. Essa é a minha forma de expressão, como quando Picasso pintou a “Guernica” para expor as atrocidades que estavam acontecendo na Espanha.
HB – Por outro lado, penso em “Operários” (1933) da Tarsila, uma obra que reflete um engajamento político e uma crise econômica que afetou profundamente a classe trabalhadora. Ver tantos rostos diferentes reunidos, com sentimentos múltiplos, deve ser uma experiência corriqueira para quem assume o controle de uma pista de dança, por exemplo.
PM – Já fui convidada para falar sobre a Tarsila em um club paulistano e esse momento me ajudou a perceber que, assim como ela, eu também estou constantemente colecionando referências para introduzir na minha própria arte. Parece óbvio, mas não é. Não sou boa com pincéis e tinta, mas sei que pertenço à música porque me emociono com ela. Às vezes, vejo pessoas que sequer estão dançando, mas apenas sentindo o ritmo e isso também é um momento de apreciação.
FP – É preciso viver a música para fazê-la. É sobre conexão. Antes de começar a tocar, preciso conhecer o público daquela noite, entender o sistema de som do lugar, explorar a iluminação, saber o resultado de jogos de futebol…
HB – Jogos de futebol?
FP – Parece bobo, mas é verdade. Se o time de uma cidade acabou de perder uma partida, isso vai afetar o humor das pessoas. É um movimento cultural, sensível e filosófico, como os que Picasso viveu em Paris fora do ateliê.
PM – Você já veio ao Brasil?
FP – Só uma vez, mas foi para uma escala de voo. Tenho muitos amigos aí e quero muito ir. Sei que a cena é ótima!
HB – Venha! E toquem juntos!
PM – Sim! Eu estava escutando alguns dos seus setlists e acho que você amaria o estilo daqui.
FP – Tenho certeza. Quando você está tocando, alguém comenta sobre a sua conexão com a Tarsila? Na minha experiência, há dois tipos de pessoas: as que acham que sabem o que você deveria ser, porque te cobram um legado, e as que ficam surpresas, tipo “eu não sabia que o Pablo Picasso era asiático!” Hoje, tenho orgulho do que faço e já não me incomoda mais, mas foi um processo difícil. Só recentemente conquistei a segurança de ser quem eu sou.
PM – As pessoas têm um talento para ser inconvenientes, mesmo quando só estão curiosas. Para mim, é menos complicado porque eu não tenho o sobrenome “do Amaral”. Meu nome de DJ é Arraya. (risos) Hoje, estou um pouco mais conhecida e as pessoas já começaram a fazer essa associação, mas imagino que para você seja realmente mais complexo. O Picasso é muito mais famoso que a Tarsila! (risos) Ainda assim, no Brasil, sinto que ter conexões com alguém especial abre portas. Ser bom não significa que você será visto, ouvido ou convidado para tocar. Isso é muito triste. Na arte, é igual.
FP – Isso é um lado sombrio da indústria, mas você precisa ter orgulho dessa herança. Como é a relação com o restante da família?
PM – Quando a Tarsila era viva, não era comum uma mulher escolher trabalhar, especialmente como artista. Ela teve o privilégio de fazer isso e não seguir o caminho de ser dona de casa e mãe. Alguns parentes não gostavam disso, mas ela assumiu a própria decisão e foi um sucesso. Aliás, quando foi que você sentiu que tinha alcançado o sucesso?
FP – Essa é uma boa pergunta. Em termos de performance, confesso que ainda não cheguei lá. Mas, como pessoa, me sinto bem-sucedido, porque encontrei meu propósito.



