
Por Ana Wainer
Um nó, em todos nós, acompanhando de longe uma região em Minas Gerais que sumiu do mapa da noite para o dia, um rio sendo lentamente envenenado naquela semana de insatisfação com os rumos da humanidade. Diante do caos político do Brasil, dos atentados em Paris e Damasco, de absurdos passando como lei no Congresso, ir para Mariana ajudar, registrar, era algo tangível. Um café aqui, um papo ali, mensagens trocadas, um carro emprestado e se juntou uma improvável, mas potente, turma: eu, o artista plástico Gian Spina e três fotógrafos documentais: Aline Lata, Helena Wolfenson e Paulo Bessa.

Chegamos em Mariana depois de um dia inteiro de estrada debaixo de chuva, na expectativa de encontrar uma cidade mobilizada com o desastre ambiental que havia acontecido fazia 15 dias. Confusos, não sabíamos para onde ir, demoramos a entender qual a direção. Aos poucos, a vista foi se acostumando. Nas conversas com os locais, e com os dias, numa mistura de voluntários e documentaristas, conseguimos ter uma ideia melhor do que se passava – mas ainda há muita coisa no escuro.

Ver com os próprios olhos a imensidão e o silêncio da lama. O silêncio do tempo que parou para os subdistritos afetados. Silêncio das casas destruídas, das vidas que foram deixadas, o silêncio das autoridades locais e do poder público, o silêncio da lama supostamente estável, o silêncio do cheiro azedo da lama com seus corpos e roupas soterrados: todas as coisas de vidas inteiras fedem aqui. O silencio da Samarco, que, salvo uma placa na estrada indicando sua sede e uma meia dúzia de bandeiras a meio pau, não aparece em nenhum outro lugar; silêncio dos animais que ficaram à deriva e das pessoas meio presas, meio alojadas nos hotéis de Mariana com medo de perder o que já não tinham mais. Silêncio do medo de perder o pouco fornecido pela Samarco para abrigar e alimentar quem viu uma vida de sonho realizado ser levada pela lama tóxica.

Desde então, tenho pensado muito nas Gerais. Essa estrada real que pegamos todos os dias, por vezes diversas, nas idas e vindas aos locais afetados, essas curvas da estrada e uma paisagem que foi pintada de vermelho pela mineração, uma placa indicando a terra de Carlos Drummond de Andrade, outras que sinalizam a venda de queijos e cachaça, o sobe e desce dos morros. Sempre me voltava às Gerais de Guimarães Rosa. A travessia pelo Gualaxo do Norte – descalço – para chegar do outro lado de Paracatu de Baixo; o mar de lama que se vê do alto da montanha olhando para Bento Rodrigues: Tudo Tanto.

É muito intensa a sensação de impotência diante de um desastre desses. De ver uma vaca atolada há dias e não ter os meios de resgatá-la, o feliz rabo do cachorro ao ver seu dono e a frustração de ambos ao lembrarem que não há mais a casinha e que o canil, assim como o hotel, são, simultaneamente, prisões e soluções. Ver a força humana se cansar, a falta de carro apropriado, os veterinários, os motoristas, todos trabalhando de graça. Entre todas as impotências, a de ver um ser humano bêbado de tristeza é talvez das mais fortes. O homem que não conseguia falar pois tinham morrido as suas 64 galinhas; os meninos que passeavam todos os dias pela barragem viam as rachaduras e eram ignorados ao alertar os funcionários da Samarco; o senhor que guardava toda a sua poupança embaixo do colchão de casa – agora também soterrada; a moça que vê o descampado bege e sua égua atolada ao fundo, não faz nada, não pode fazer nada.

Meios de comunicação dando toda a atenção ao meio ambiente, esquecendo do meio humano, afetado, catapultado como pinos de boliche.As pessoas daquela região, assim como os animais, parecem não merecer a dita atenção: não se pode exportá-los, não virarão latarias de automóveis anglo-australianos, as cifras aqui são de outra ordem – não se trata de materiais capitalizá- veis. Neste momento em que há tantas questões mal resolvidas – o aborto criminalizado, os jovens negros espancados, as escolas fechadas e um ladrão visto como herói, a lama, o silêncio e o silêncio da lama nas pessoas persistem por todas essas Gerais.