Do altar à passarela, a fé virou linguagem social. Símbolos sacros saem do rito e ganham novos sentidos na moda e no pop. Veja como performances, coleções e filmes reescrevem esse vocabulário. Foto: Montagem (Gabriel Fusari)

Quando o relógio marcou meia-noite em Callao, Madrid, a imagem de Rosalía vestida como uma neo freira tomou as telas e a palavra “LUX” brilhou no centro. O recado é visual e direto. Hábito, véu e latim formam um kit de signos com lastro na história da arte e leitura imediata no feed. O primeiro passo sonoro veio com “Berghain”, parceria com Björk e Yves Tumor. A faixa une coro e arranjo orquestral a imagens de rito, enquanto o título remete ao clube-símbolo do techno. O contraste orienta a proposta, com a espiritualidade em diálogo com a cultura da noite e a forma a serviço da narrativa.

Quer exemplos? Marina Abramović trabalha o sagrado pela forma, com silêncio prolongado, repetição e uma mise-en-scène de altar. Em “The Artist Is Present”, o encontro olho no olho e a duração criam efeito de liturgia. Lady Gaga aciona ícones católicos em “Alejandro”, com hábito estilizado, terço e crucifixos em primeiro plano. Na moda, esse repertório já é um velho conhecido. A Alta Sartoria de 2025 da Dolce & Gabbana trouxe bordados, mantos e referências barrocas. Mais localmente, no SPFW, a Foz, de Antonio Castro, enviou aos clientes um convite com a imagem de Padre Cícero para o desfile em que apresentou, entre outras propostas, tricôs de fitas inspirados nas fitinhas de devoção. Pela crença popular, faz-se um pedido a cada nó, como nas fitas do Senhor do Bonfim. A coleção aproxima o léxico sacro de materiais e cores locais. O ponto não é doutrina, e sim vocabulário de imagens.

A internet amplia a tendência. Perfis e comunidades jovens discutem liturgia, disciplina e vida comum. De um lado, grupos usam a iconografia cristã para afirmar culturas locais. De outro, o movimento das tradwives reativa uma estética doméstica conservadora. No pós-pandemia, ritos semanais voltam como rotina compartilhada. O resultado é claro. O religioso opera hoje como linguagem social.

HISTÓRICO

A relação entre moda e catolicismo tem casos concretos. Em 1997, Jean-Charles de Castelbajac desenhou as vestes litúrgicas usadas por João Paulo II e pelo clero nas Jornadas Mundiais da Juventude em Paris. Em 2024, o estilista voltou ao tema ao criar os trajes para a reabertura da Catedral de Notre-Dame. Em outra frente, a cultura visual digital testou limites em 2023, quando uma imagem feita por inteligência artificial mostrou o Papa Francisco com um casaco acolchoado branco de grande volume. A foto pareceu real para muita gente e deixou evidente como símbolos religiosos circulam no feed com rapidez.

No cinema recente, “Conclave” detalha a simbologia do alto clero. O figurino usa materiais e formatos de cruz para sugerir posições dentro da Igreja, do gosto pela simplicidade à opulência. O vermelho dos trajes aparece em tom mais escuro do que o adotado hoje no Vaticano, escolha que reforça o clima do filme. Nos acessórios, a trajetória dos sapatos papais virou notícia. Em 2005, circularam rumores de que Bento XVI usaria Prada, mas o Vaticano atribuiu os pares ao artesão Adriano Stefanelli. Dois anos depois, a “Esquire” destacou os sapatos vermelhos do papa em uma lista de estilo. Com Francisco, a opção passou a ser por calçados pretos simples, alinhados à imagem de sobriedade.

 

MODA SACRA

As passarelas retomaram esse repertório em momentos marcantes. Na alta-costura inverno 2000 da Dior, John Galliano levou um cardeal para a cena e abriu o desfile em clima de casamento para falar de desejo e fetiche. Em 2007, Jean Paul Gaultier vestiu o casting inteiro como versões da Virgem Maria, com halos e mantilhas, e chamou Dita Von Teese para a apresentação. Em 2020, Boy George encerrou a celebração dos 50 anos de carreira de Gaultier cantando “Church of the Poison Mind”, costurando música e iconografia.

No circuito de museus, a exposição “Heavenly Bodies: Fashion and the Catholic Imagination”, no Metropolitan Museum of Art em 2018, reuniu peças do Vaticano e criações de nomes históricos. O público recorde e o debate sobre apropriação e tributo mostraram a força visual do tema. Na cultura pop, Madonna já havia provocado discussões desde “Like a Prayer”, de 1989, com estigmas, cruzes em chamas e cenas dentro de igrejar. A reação pública incluiu críticas do Vaticano e o rompimento de um contrato com a Pepsi, episódio que consolidou o clipe como um marco dessa conversa. Esses exemplos ajudam a situar “LUX”. O disco não nasce isolado. Ele se apoia em uma linha contínua de usos da iconografia católica que atravessa púlpito, passarela, museu, videoclipe e timeline, com sentidos ajustados ao contexto. Aqui, o foco está na linguagem, não na doutrina.