Giorgio Armani na banheira, por David Lees (Foto: Getty Images)

Giorgio Armani morreu. O homem, não a lenda – e ainda que seja fácil confundir os dois, porque a moda tem mania de misturas, o momento pede a reflexão. Dias assim, em que esse tipo de notícia chega logo cedo pela manhã, têm uma aura nublada, embaçada, e uma pressa justificada para escrever (noticiar) sobre esses fins que todo mundo espera para não chegarem. Dentro do armário, reencontrei peças do signor Armani que me acompanham há anos: um casaco de veludo (tom de petróleo que nunca achei igual) e outro, em tweed levinho, com botões de madeira e gola mandarim. Pensei naquele velho clichê favorito… “Armani veste a esposa, Versace veste a amante” – e, se não sou nenhuma delas, só posso ser o tal “gigolô” que Giorgio inventou para Richard Gere em 1980.

Esposa, amante, gigolô… o quão injusto é definir (em três palavrinhas tão bobas) a memória e o impacto estético daquele que, por cinquenta anos, reinventou um estilo tão bem que fez o mundo todo pensar que a moda “sempre foi assim”. Elegância, Armani dizia, não pode ser arrogância – e, de leve, essa despretensão virou ícone, mito, uniforme do “bom gosto” … uma arte.

Giorgio, “Giò”, “Mani”, foi de uma geração italiana turbulenta, vanguardista, reacionária tímida mas nem um pouco inofensiva. Eram os pós-modernistas dos anos 1980, figuras de uma Itália afluente e industrialmente agitada onde arte, moda e design se tornaram sinônimos. A “turma” era um olimpo de iconoclastas. Nas roupas, Ferré, Krizia, Versace, Moschino, Biagiotti, Capucci, Gigli, Lancetti, Armani! No décor, forças de Memphis e Alchimia, como Ettore Sottsass, Alessandro Guerriero, Michele de Lucchi, Andrea Branzi, Sergio Atsi e Cappellini. Ai de que não tivesse uma “jaquetinha” pontuda e uma cadeira de Mendini – ou uma casacão gráfico e uma luminária Luceplan.

Desse lifestyle esteta e subversivo, instituiu-se uma “era de ouro” – um milagre definido pelo sociólogo Francesco Alberoni depois de ver, em uma festa no Palazzo Durini, em Milão, Armani estilista presentear seus 150 convidados com luxuosas almofadas douradas. Depois de Gianni Agnelli, da Fiat, a Itália tinha seu mais novo magnata; um que jamais puxou o freio e que trabalhou até quase os últimos segundos de vida.

Giorgio Armani, por David Cooper (Foto: Getty Images)

Em 91 anos, Giorgio carregou duas histórias: a “de frente” e a “de trás”, uma combinação de passado e futuro que, frequentemente, se encontravam. Nascido em 1934 em Piacenza, teve a infância calma e provinciana interrompida pela guerra. Entre bombardeios e clima de insegurança, viu seu pai e irmão mais velho (alto, magro e de olhos azuis – “como Joseph Cotton”, um ideal de beleza que Armani eternizou em sua obra) trabalharem para o regime fascista de Mussolini e sua mãe, mulher de poucas palavras, esconder comida nas roupas para driblar o racionamento. Com a irmã mais nova (glamorosa e altiva desde pequena), teve poucos momentos de diversão genuína enquanto tentava sobreviver a tiros e explosivos. Ele mesmo, enfim, pouco viveu da atmosfera lúdica que a infância pede e, por isso, explicava, carregou durante toda a vida um semblante melancólico que incomodava até seus funcionários: “como você pode ser tão rico e tão triste?”.

Ocasionalmente otimista, entretanto, ainda lembrava das idas ao cinema que se tornaram escapismo. A Coroa de Ferro (1941), de Alessandro Blasetti, foi o primeiro filme que viu, seguido de As Aventuras do Barão Munchausen (1943), sua primeira experiência cinematográfica “colorida”. No final dos anos 1950, quando a família se mudou para Milão, retomou a rotina cultural e as cenas de Pasolini, Bertolucci, Rosselini e Rosì enriqueceram seu repertório visual, protagonizado por divas como Anna Magnani, Sophia Loren, Silvana Mangano e Gina Lollobrigida.

Como estudante, Giorgio jamais se aplicou. Humilhado por professores e constantemente reprovado, sequer terminou os estudos para ser médico, profissão que sonhava exercer. Ao contrário, entrou para o exército em 1955, onde aprendeu a disciplina rígida que manteve durante toda a vida e, dois anos mais tarde, arrumou um emprego como vitrinista-assistente na loja de departamentos milanesa La Rinascente, onde flertou pela primeira vez com o mundo da moda.

Giorgio Armani com uma de suas modelos, em Milão, 1973, por Vittoriano Rastelli (Foto: Getty Images)

De lá, passou para as mãos de Nino Cerrutti, estilista que o incumbiu de descontruir sua moda masculina em plena metade da década de 1960. Experimentando com tecidos mais leves, Armani também se interessou pela moda feminina e, durante um final de semana em Forte dei Marni, teve o encontro que transformou sua vida. Dentro da badalada La Capannina, dividiu com um jovem bronzeado seus sonhos de criar uma marca própria: era Sergio Galeotti, bon-vivant toscano que apoiou a ideia. Voltaram para Milão e, depois de cultivar um romance, abriram um pequeno estúdio de design em 1973. Com sucesso precoce, a empreitada resultou na fundação, dois anos mais tarde, da marca Giorgio Armani.

Aqui, dá até para se espreguiçar com a frase “o resto é história”. E é mesmo. A visão do estilista para a moda definiu o visual poderoso dos yuppies e ajudou emancipar as mulheres em um momento cultural em que o feminismo pegou tração pelo mundo. Parte confessa era inspirada na criatividade anterior de Coco Chanel e Yves Saint Laurent, mas Armani revolucionou a alfaiataria feminina ao livrá-la dos “ranços sisudos” que o estilo carregava desde a década de 1930, quando a androginia (pense em Marlene Dietrich) se resumia a vestir mulheres com “roupas de homem”. Sem esses vícios, Armani ressignificou o “terninho” e seduziu os “caretas” para uma nova era.

Hoje, cinquenta anos desde que seu nome “apareceu” no mundo, é quase fácil pensar na retrospectiva. Fotos de desfiles lotados, recortes de jornais e revistas, a comoção pela sua ausência nas últimas temporadas de moda… tudo é prova do legado bilionário que Giorgio viveu e criou, se desdobrando em marcas como Armani Privé, Armani Exchange, Emporio Armani e Armani Casa, além de cosméticos e perfumaria. A simplicidade, entretanto, é ilusória e o estilista é um arquétipo complexo da fantasia popular de que moda é “só imagem”. Olhe para os terninhos: tão bobinhos, minimalistas, tradicionais… batidos! Agora, olhe melhor: tão revolucionários, subversivos, emancipatórios… tão, tão Armani!