
Por Lilian Pacce
O que a internet uniu, a política não separa. Não? É incrível que toda a promessa (quase cumprida) de que a internet derrubaria fronteiras geográficas, sociais e econômicas, supostamente tornando o mundo mais democrático e inclusivo, acabou gerando na vida real uma forte onda de conservadorismo separatista, que tem conquistado o poder de importantes nações.

E, em momentos assim, o espírito criativo da moda costuma reagir de duas maneiras: com irreverência e escapismo. Surgem volumes oníricos, fantasias etéreas, imagens surreais e looks contestadores da nova ordem. O que nos leva ao resgate de um personagem de destaque nos anos 1980: o icônico Leigh Bowery (1961-1995).

Não é à toa que estilistas como Alessandro Michele, da Gucci, Jeremy Scott, da Moschino, Kiko Kostadinov e Weider Silveiro têm olhado para o universo de Leigh em suas coleções recentes.

Mas a força imagética de Leigh – e seus subtextos – influenciam grandes criadores há anos: de Rei Kawakubo a Alexander McQueen, de John Galliano a Rick Owens, passando por Jean Paul Gaultier, Maison Margiela, Garreth Pugh, Junya Watanabe e tantos outros.
Australiano de Melbourne, Leigh se mudou para Londres, onde exerceu seus múltiplos talentos – coincidência ou não, exatamente no período do governo conservador de Margareth Thatcher, auge da epidemia da Aids, da qual ele foi vítima na madrugada de 1/1/1995.

Multitask, Leigh era muito mais do que uma drag queen. Foi muso do pintor Lucien Freud, figurinista da companhia de dança de Michael Clark, cantor e band leader da Minty, apresentador da BBC ao lado da drag Divine, dono do club underground Taboo (que virou musical, criado pelo cantor Boy George).
Mas, acima de tudo, nu ou vestido, Leigh era um artista performer que usava o corpo como tela, concebendo seus próprios figurinos e make. Tudo isso fazia dele algo difícil de definir ou, como disse seu amigo Boy George: Leigh era uma obra de arte moderna com pernas!

Poucos artistas se expressaram tão livremente como ele. Era tão provocador quanto romântico, tímido, mas destemido – deixava sua imaginação voar, abrindo novos caminhos, quebrando paradigmas.

Ao mesmo tempo que apresentava o programa The Clothes Show, da BBC, todo montado tomando um chá da tarde na tradicional Harrods, como se fosse uma senhora da nobreza, ele posava nu para os retratos de Freud ou fazia performances escatológicas na noite londrina.

Sabe a balaclava do inverno da Gucci? Era inspirada no famoso make clown de Leigh, assim como a máscara-make do vestido pink da coleção Pre-Fall da Moschino – o rosto coberto das modelos, adotado por Martin Margiela nos desfiles de seu período à frente da marca, fazem alusão a ele também.


Mas foi aqui no Brasil, na Casa de Criadores, que ele foi completamente reverenciado na última temporada. Weider Silveiro, estilista do Piauí radicado em São Paulo, colocou na passarela total looks que marcaram o estilo de Leigh. “Sempre olhei para ele para inspirar imagens impactantes e contemporâneas, mas, lógico, que o momento atual, social e político, me empurrou ainda mais para o seu universo escapista!”, conta Weider.
No desfile, roupa, rosto e corpo viram uma coisa só, usando, por exemplo, o padrão príncipe de Gales (clássico de Leigh revisto por McQueen e Gareth Pugh, entre outros), misturando xadrez ou estampas florais.

O make é o clown, com aquela bocona de palhaço vermelha, pink ou berinjela. E o toque bondage não foi esquecido por Weider – nem por Donatella no desfile masculino de seu próximo Inverno para a Versace.
Leigh era intenso. Agitador da noite e da cultura londrina, gay assumido, em uma de suas performances ele dava à luz Nicola Bateman, companheira da vida com quem se casou meses antes de morrer, aos 33 anos.

Então, para fechar esse texto com uma declaração de amor, vamos falar de flores! A cabeça-capacete florida que apareceu em vários desfiles do último Inverno remete à cabeça-pétala de Leigh: romantizada na Valentino e na Schiaparelli ou mais dark na Noir, de Kei Ninomiya.
Porque, afinal, Leigh transitava pela luz ou pela sombra, de noite ou de dia, sem medo da fantasia.
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