Maison Margiela, Artisanal, primavera 2024 (Foto: Divulgação)

A despedida de John Galliano da Maison Margiela foi o suficiente para emocionar fashonistas na última quarta-feira (11.12). Mais do que isso, entretanto, o estilista publicou, nas redes sociais, uma carta em que diz adeus à marca depois de 10 anos como diretor criativo. Entre as palavras, Galliano agradeceu Renzo Rosso, empresário fundador da Diesel e dono da Margiela, Marni e Viktor & Rolf, ressaltando sua “bondade e generosidade”. Além disso, também celebrou sua sobriedade e o fim do vício nos entorpecentes, parcialmente responsáveis pelos episódios e escândalos que, em 2011, resultaram em sua demissão da Dior.

BAZAAR traduziu a carta do estilista, que você lê na íntegra abaixo:

 

“Hoje é o dia em que digo Adeus à Maison Margiela.

Meu coração transborda de gratidão alegre, e minha alma sorri.

Hoje faço 14 anos—14 anos sóbrio.

Vivendo uma vida melhor do que eu algum dia sonhei ser possível, e isso é graças a duas pessoas—duas pessoas verdadeiramente belas que amo e prezo. No entanto, elas são humildes demais para permitir que eu mencione seus nomes aqui. Sabemos quem elas são, e serei eternamente grato a elas, para sempre endividado.

Os rumores… Todos querem saber, todos querem sonhar.

Quando chegar o momento certo, tudo será revelado. Por agora, aproveito este momento para expressar minha imensa gratidão. Continuo a me redimir, e nunca deixarei de sonhar.

Eu também preciso sonhar.

Em um encontro familiar de Halloween em Tóquio, todos maquiados para a ocasião sob o olhar silencioso e em câmera lenta da lua cheia, Renzo envolveu-se em um diálogo sobre legado. Ele me disse que seu legado seria seus filhos e seu trabalho.

Essa conversa me levou a uma pergunta inesperada dele sobre meus pensamentos sobre John Galliano. Expliquei que havia lamentado a perda de JG e minha identidade anterior, mas estou muito mais feliz com a nova versão de JG. Me esforço todos os dias para ser uma versão melhor dessa pessoa.

Então me senti corajoso e o desafiei. Eu lhe disse que, da minha perspectiva, uma parte do legado dele seria a bondade e a gentileza que ele me mostrou 10 anos atrás.

O maior e mais precioso presente que ele me deu foi a oportunidade de encontrar minha voz criativa novamente, quando eu havia me tornado sem voz. Minhas asas se curaram, e eu entendi melhor o ato devorador da criatividade.

Minha gratidão pelo sentimento “Only the Brave,” tatuado nele, é profunda. Ter isso gravado na pele deve significar que você realmente acredita nesse lema.

Ele pode ser muito persuasivo — sua positividade é contagiante.

Ao me convidar para assumir o cargo de Diretor Artístico na casa que Martin construiu, e ao possibilitar que Martin e eu tomássemos um “chá” juntos. Esse cavalheiro foi o ponto de virada para mim. Ele me fez sentir que eu poderia fazer o trabalho, mesmo quando duvidava que fosse a pessoa certa para isso ou ousava presumir que era. A alegria de Martin e seu desejo há muito escondido de que um couturier assumisse esse papel, vieram com seu conselho gentil: “Tire o que quiser do DNA da casa, proteja-se e faça disso algo seu… você sabe como.”

Diante desse cavalheiro, tive uma epifania: eu estava pronto.

Eu só me cercaria de pessoas com ideias semelhantes, pessoas fortes que compartilhassem a mesma ética de trabalho. Informei a Renzo que aceitaria sua oferta gentil, mas minha recuperação teria que vir em primeiro lugar—e veio. Dez anos depois, sou eternamente grato por este espaço seguro para criar e construir uma nova família que me apoia com coragem e dignidade. Embora pouco tivesse mudado na indústria na época, minha perspectiva sobre ela mudou radicalmente. Comecei a ver mudanças ao meu redor: compaixão e empatia.

Gratidão à minha família da moda por este momento criativo que salvou vidas e o lugar seguro que construímos juntos. Minhas equipes, cujo apoio tem sido terno e corajoso, caminharam comigo por este estreito caminho até o aqui e agora.

Os seres humanos, em seu melhor, são resilientes, criativos e inventivos quando não têm medo de ser quem são.

Admito facilmente que sou exigente e difícil de acompanhar quando desafiado, mas olhe o que construímos.

É assim que a família — a indústria da moda — está em seu melhor: quando apoiamos uns aos outros coletivamente, sem julgar. Quando aceitamos, perdoamos e ajudamos uns aos outros a ver o erro de nossos caminhos. Sendo corajosos o suficiente para desaprender, reeducar-nos a partir do passado — pois é socialmente aprendido — para compartilhar, empatizar e praticar compaixão.

Uma segunda chance. Com olhos de criança e inocência esquecida, fazemos as pazes, acreditando em nós mesmos — pois Deus está em todos nós. NÃO quando nos cancelamos uns aos outros.

Este precioso presente de que falo, apoiado por entes queridos e queridos, me permite ver o mundo de novo através de uma lente diferente. Isso me permite compartilhar essa experiência com os jovens adultos que se juntam a nós, reforçando uma crença em si mesmos.

Você pode ser quem quiser ser — com alegria. Você importa, e nós nos importamos.

Perdoar a mim mesmo foi, por um tempo, o ato mais difícil. Eu me sentia culpado por meu comportamento ter perpetuado o estereótipo de que a criatividade tinha que ser alimentada por bebida e drogas. Aquela velha atitude de rock and roll. TÃO ERRADO. Com minhas equipes, provamos que a criatividade nunca sai de moda. Ela não é alimentada por forças destrutivas, mas por uma comunidade criativa que se importa e considera o design.

Através dos filmes que produzimos e das plataformas resultantes criadas, consigo me manter em contato com meus nômades digitais, conectando e compartilhando experiências sem medo. “Mutiny”, o filme, culminou meu trabalho e verbalizou nossa mensagem sociopolítica—nossas crenças de que os direitos trans, os direitos queer, a igualdade de gênero no ambiente de trabalho, o antirracismo e a defesa da saúde mental devem estar no centro. Foi um manifesto para esta corajosa nova geração — um testamento à coragem de se levantar orgulhosamente e sem medo pelo que você acredita.

Eu celebro as coleções sem gênero que agora produzimos, reforçadas por como são compradas e apoiadas. Minhas coleções coeditadas, sejam Artisanal ou Ready-T0-Wear, representam diversidade e individualidade.

Eu celebro os relacionamentos mágicos com minhas musas, que me desafiam a criar lugares seguros onde podemos sonhar e inventar. Vocês inspiram tudo o que faço. Vocês são minha vida. Todas as minhas musas combateram as normas da sociedade e as restrições sobre gênero e identidade corporal. Eu me regozijo na autoexpressão e liberdade.

Finalmente, quero celebrar a alegria que encontrei nas várias maneiras de nos comunicarmos criativamente e trabalharmos com diferentes culturas artísticas, teatro, cinema, digital, abraçando todas essas culturas para celebrar a moda.

Ao meu atelier e minha equipe — devotada na crença e dedicada ao estilo e à técnica —, obrigado. Nós saboreamos a importância da moda lenta e ética e a influência que ela tem em todas as nossas coleções, o modo piramidal de trabalhar. Seu conhecimento extraordinário e a capacidade de comunicar uma linha com sentimento e emoção é o coração de toda criação. Juntos, somos movidos pela beleza — a busca pelo equilíbrio, construção e a leveza de uma pena.

Obrigado.

Johnny G.”