
Inventor da semana de moda brasileira, Paulo Borges coleciona sucessos e celebra os 30 anos do evento com edição histórica e line-up memorável. Fotos: Gustavo Zylberstajn
Por Eduardo Viveiros
Paulo Borges é uma figura difícil de se fazer parar, com uma agenda tão abarrotada de compromissos que ele quase faz lembrar o Frank Sinatra que, em 1965, driblou Gay Talese e evitou a entrevista por conta de um resfriado. Mas parece que o frenesi cotidiano é natural para quem passou – e passa – a vida falando, articulando, amarrando, se mete em projetos mil e garante que nunca fica gripado. Mais natural ainda, à beira da comemoração final dos 30 anos do SPFW, seu primogênito, que acontece agora em outubro e foi o gancho para este papo, entre um avião e uma reunião, para falar sobre o ontem e o amanhã da moda.
Eduardo Viveiros: Como é essa vida? Não para nunca?
Paulo Borges: Nunca! Mentira, eu paro em dezembro e janeiro, e volto para minha casa na Bahia, em Arembepe, que é onde relaxo. Tenho os meus amigos, a casa em frente ao mar quente. Não posso perder o verão lá. É quando me recarrego, me regenero mesmo.
EV: Você não parece o tipo que desliga muito fácil.
PB: É um exercício… Tirar o celular da mão, olhar para outras coisas. Gosto de cozinhar gastando tempo, sem o horário do dia a dia.
EV: Trinta anos de SPFW. É tempo demais, não?
PB: É uma vida! Meu filho, que tem 20 anos, só me viu às voltas com o SPFW. Agora, estamos vivendo um novo momento, em que ele não precisa fazer tudo mais comigo. Já é adulto. É esse momento até meio angustiante de quebrar laços que foram feitos para formar aquela pessoa. Ele está na faculdade, construindo uma existência própria. Tento mostrar a ele a objetividade de vida. Em tudo que ele fizer agora, eu não sou mais o responsável. Maturidade é desenvolver esse domínio de ações e reações.
EV: É curioso pensar que você tem dois filhos: o menor está indo para a vida, mas seu filho mais velho, o SPFW, ainda depende de você.
PB: Depende 100%! Trabalhei muito nesses anos pensando quem poderia me suceder. Amo o que eu faço, mergulho totalmente, enfrento tudo o que é crise. Sou aberto a conversas, a entender quando é preciso mudar a data, o que for. Todo mundo sempre entendeu que sou uma ponte, não sou nem o começo nem o fim. E por ser uma pessoa independente – não tenho marca, não sou dono de shopping, não sou herdeiro de nada –, toda a construção sempre foi em torno das pessoas. É realmente um filho. Tentei criar sucessores, mas entendendo que, da maneira que faço e penso, não vai haver outra pessoa assim.

Inventor da semana de moda brasileira, Paulo Borges coleciona sucessos e celebra os 30 anos do evento com edição histórica e line-up memorável. Fotos: Gustavo Zylberstajn
EV: Não tem outro Paulo Borges.
PB: E é uma criação minha, o SPFW. Quando entrei na Regina Guerreiro, nos anos 1980, foi uma puta escola de produção. Não tinha ajudantes, quatro carros, fazia tudo sozinho. Hoje, todo mundo que começa na moda já tem dois assistentes. Nunca foi assim. Então, fui formando pessoas, pensando que elas poderiam me suceder um dia, mas vou tocando a vida. Acho que é engraçado, pois coloco sempre pessoas do meu lado para trabalhar – e elas acabam assumindo um voo próprio, o que é maravilhoso. E também porque elas entendem o tamanho do abacaxi! A pressão que é assumir algo como o SPFW. E hoje tenho sócios, que cuidam de uma parte de produção e back-office, jurídica, que não preciso pensar mais. Mas a parte criativa é toda direcionada por mim com a equipe.
EV: Você enxerga o SPFW acontecendo sem o Paulo Borges?
PB: Olhe, hoje, não. Mas vivi um momento, em 2007, quando minha mãe morreu entre o primeiro e o segundo desfile daquela edição, em que fiquei fora a semana toda e o SPFW aconteceu. Deixei tudo organizado, mas todo mundo se empenhou mais – as agências, os maquiadores, diretores de desfile, todos se apegaram mais a uma responsabilidade coletiva. O brasileiro tem isso, né? Então, se eu conseguir ter sucessores em áreas específicas e todos as tomarem para si, acontece. Mas hoje, se eu largar tudo e resolver morar na praia, não sei o que pode acontecer. Porque não é só montar um line-up de desfiles, é uma construção de relações com todo o mercado. Tem que ouvir, tem que falar.
EV: É muita política envolvida.
PB: É, eu falo que é uma política humana. Do pólis, mesmo, no sentido de comunidade. Estamos fazendo muitas mudanças internas, por exemplo, que demandam conversas. No line-up mesmo, houve um corte grande de muita gente que precisa se reorganizar num projeto que faça sentido antes de desfilar, e isso foi falado nos últimos anos. O line-up está mais organizado. Isso é uma progressão, pois você só se coloca no momento certo se der dois ou três passos adiante. São várias mudanças que realmente poderiam ter sido antecipadas, concordo, mas a pandemia também afetou esse processo. Tudo é causa e efeito. A pandemia atrasou e nos fez experimentar outras coisas. Coisas que voltam para o lugar, mas as cabeças estão em outro. Tudo está mais difícil, as pessoas estão mais malucas. É causa e efeito dos últimos cinco anos. A moda é o reflexo da sociedade – se a sociedade está louca, a moda está louca.
EV: Em resumo: não há um sucessor?
PB: Sucessor mesmo, não há. Ainda bem que não quero sair!
EV: Você não se cansa?
PB: Não, porque ainda tem muita coisa a ser feita. Eu achava que, em trinta anos, se criaria uma cultura e um mercado, mas não medi a variável do externo. O externo muda o interno. Passamos por muitas questões. E o que se acumula agora é uma questão geracional, que está presente e é protagonista. Então, é preciso entender o que essas pessoas pensam, como pensam e orientá-las, sem cercear. Essa geração pesquisa pouco! Não se aprofunda. Estamos vivendo na base do algoritmo, que cria essas novas verdades.
EV: Como o evento pretende refletir sobre este aniversário?
PB: Em algum momento, pensamos em mostrar imagens icônicas, a história… mas concluí que, na verdade, temos que falar sobre o futuro. O que nos motivou trinta anos atrás? Não tinha nada. Não tinha escola de moda, não tinha profissional de moda, não havia a carreira de modelo, as marcas não se apresentavam juntas. Tudo isso era um motivo de desafio. Sou ariano, gosto de me desafiar o tempo todo. Se vamos falar sobre trinta anos, qual é o desafio deste momento? É essa a pergunta base.
EV: E qual é?
PB: O mundo que estamos vivendo está em uma evolução de autodestruição. Tudo o que era regra, que manteve o pós-guerra, as democracias, os valores de multilateralismo – tudo está indo para o esgoto. Precisamos mostrar um caminho de futuro, que não tem mais trinta anos. Ele tem cinco! E isso é só para falar um número, pois, em seis meses, um ano, tudo muda. Então, em contraponto, todo mundo começa a pensar no ser humano. Eu sempre falo que entrei na moda por causa das pessoas.

Inventor da semana de moda brasileira, Paulo Borges coleciona sucessos e celebra os 30 anos do evento com edição histórica e line-up memorável. Fotos: Gustavo Zylberstajn
EV: Lá atrás, havia um caminho claro nesse desafio?
PB: Que nada, não havia um plano definido. Era algo que precisava ser feito: trabalhamos juntos para mudar. A primeira pergunta era: o que é uma semana de moda? E as pessoas ficavam questionando o que mudaria de fato. A mudança era no longo prazo para construir um processo, gerar profissões, criar desejo, tudo seria trocado. Falávamos que o projeto tinha 30 anos porque é uma mudança geracional. Eram duas escolas de moda naquela época, todas as meninas queriam ser misses. Em 2000, todas queriam ser modelo – assim como os meninos queriam ser jogadores de futebol.
EV: E hoje todos querem ser influencers.
PB: Influenciadoras, criadoras de conteúdo… e tudo isso desgasta, pois esvazia o assunto. Todos vão em um caminho de imediatismo. Mas as ondas passam e, no digital, passam mais rápido ainda. As pessoas surgem e desaparecem com mais velocidade. Estamos nesse momento de desconstrução desses parâmetros. Todo mundo fala sobre tudo, sobre moda – todo mundo é crítico de moda. Há pessoas que falam como se fossem a Gloria Kalil, que tem 50 anos de bagagem. É preciso desse tempo, é preciso estudar. Olhar as coisas para além da imagem antes de dar o seu veredito. Fica muito em cima do que está acontecendo agora e o processo vai se esvaziando. Acho que temos que provocar esse modelo de volta, é preciso de tempo para analisar.
EV: Essa última mudança geracional foi muito rápida e profunda. Você não se sente velho?
PB: Acho que não, sabia? Eu nunca consegui me ver com uma idade exata. Quando estou trabalhando, eu não tenho idade. É isso que me dá energia. É muito do mecanismo neurocientífico: se estou plugado no trabalho, eu não tenho idade, tenho experiência. Mas quando estou fora, de férias, eu sei que tenho 63 anos. A minha vida privada me dá idade; a profissional, não.
EV: Você é bom de acompanhar a velocidade?
PB: Tem uma coisa que é: você consegue ver tudo, mas não consegue mudar tudo. Fazer a mudança de rota de um carro andando é muito mais difícil do que a percepção que você tem dele. Essa é a doença que a rede dá, é uma angústia com a velocidade das coisas acontecendo e parece que você não sabe mais nada. Isso é uma loucura, pois tudo fica na superficialidade. Mas, sim, percebo tudo.
EV: No começo do SPFW, lá atrás, imagino que você não calculava que tudo mudaria de maneira avassaladora.
PB: Eu não tinha nem noção de que daria certo! De que alcançaria o que alcançou. Jamais imaginaria que o SPFW teria o sucesso que já teve, que enfrentaria crises… fui fazendo e fazendo. Foi uma construção de vida mesmo. Apesar de ariano, eu sou uma pessoa de alma. Acredito que você só vai evoluir se enfrentar os problemas postos naquele momento, só depois vem uma nova etapa. Não se pode fingir que nada está acontecendo. O SPFW é uma semana de moda um pouco diferente das outras, porque a construímos baseados nas necessidades que tínhamos enquanto país.
EV: Uma semana de moda ainda faz sentido?
PB: Para mim, o desfile é o guardião da alma. E esse momento que uma semana de moda pode proporcionar é o grande motor de transformação. Você, sozinho, não faz transformação. Não cria um círculo grande de processo, de desejo, para evoluir. Um desfile individual até pode fazer sentido para uma ou outra marca, internamente. Mas do ponto de vista do coletivo, aquilo não é nada: não está trabalhando para o bem da moda brasileira. E uma semana de moda tem que fazer sentido, primeiramente, para o mercado, não para o mundo. Ela tem que estar conectada com um movimento que mexe com o todo – ou não faz sentido.
EV: Trinta anos depois, o que ainda falta fazer?
PB: Fazer tudo de novo!