
Por Sylvain Justum
No início de 2014, fui enviado a Paris para cobrir o lançamento dos novos perfumes da grife homônima de Karl Lagerfeld. Na programação dedicada à imprensa fizemos uma parada na célebre livraria 7L, na Rue de Lille, na região de Saint-Germain des Près, verdadeiro templo da cultura de moda e arte com curadoria afiada do designer, que abriu o espaço em 1999.
Pelos fundos da livraria chegava-se ao estúdio fotográfico particular do kaiser, de onde saíram editoriais e campanhas históricas clicadas por ele. Era ali, em meio a pilhas e pilhas de livros do chão ao teto, que ele exercitava, com extrema competência, sua segunda paixão.

De lá, seguimos para o Café de Flore, um de seus spots favoritos na cidade, a poucos metros da loja e de seu ateliê. Uma visita ao escritório de Lagerfeld havia sido organizada antes da grande festa de lançamento das fragrâncias, à noite. Não esquecerei jamais a sensação de entrar em um santuário, bagunçadamente arrumado, com lápis de cor e croquis espalhados de maneira até que organizada, e mais livros, claro.

Não era permitido fotografar nada, nem tocar em nada. O clima era de máximo respeito. Não importava, estávamos no refúgio criativo de um mito. Descemos até a loja, onde pudemos comprar camisetas e moletons com a silhueta do criador, efígies em versão toy art, chaveiros com a indefectível luva preta de couro pendurada e versões colecionáveis de sua gata Choupette. Foi uma grande experiência. E ela abre este texto como forma de ilustrar um pouco do universo plural de Karl Lagerfeld, uma das mentes mais inquietas e criativas da moda no último século, que finalmente descansou – meio a contragosto, é de se imaginar – em 19 de fevereiro.

Hiperativo, Lagerfeld nem pensava em aposentadoria; costumava dizer que trabalharia até morrer. E foi exatamente o que fez. Apesar de debilitado, estava totalmente envolvido no desfile inverno 2019 da Fendi, que aconteceu dois dias depois de seu falecimento. Fez provas de roupa, escolheu tecidos e preparou uma coleção especial como forma de despedida – ele devia saber que estava partindo, especula-se que tinha câncer no pâncreas.

Seus códigos, como os maxilaços, o couro cortado a laser, um logotipo caligrafado criado em 1981 e as golas pontiagudas, estavam todos lá. Um delicado adeus à casa que comandou por 54 anos. Longevidade que manteve também na Chanel, grife que ele fez renascer em 1983 e que comandou com maestria até o fim da vida.
Foi no último desfile couture da Chanel, em janeiro, que o mundo percebeu que algo não ia bem. Pela primeira vez, em 36 anos, o designer não saiu para cumprimentar o público ao término da apresentação. Um comunicado lido pelo amigo e DJ Michel Gaubert informou que “Monsieur Lagerfeld estava cansado.” No lugar dele apareceu Virginie Viard, pupila e diretora do estúdio de criação da Chanel que agora assume as rédeas da maison.
Cabe a ela dar sequência a um legado de desfiles-shows no imponente Grand Palais, com foguetes, navios e supermercados servindo de cenário para as coleções onde reinava o tweed inventado por Coco, mas com um twist rock’n’roll que fazia toda a diferença. Um toque típico de rebeldia.

Genial e controverso, Karl Lagerfeld sempre fez o que quis, do jeito que quis. Nascido em Hamburgo, na Alemanha, em 1933, filho de comerciantes locais, Karl Lagerfeld mudou-se para Paris para trabalhar com moda, vocação que ele descobriu cedo, aos 19 anos, e que teve apoio total de sua mãe.
Em 1954, criou um casaco que venceu um concurso promovido pela marca de lãs Woolmark. Dividiu o prêmio com outro novato promissor, Yves Saint Laurent, com quem desenvolveria uma complexa relação de parceria, amizade e rivalidade. Romperam relações quando dividiram o amor do dândi Jacques De Bascher.

Em 1958, Lagerfeld tornou-se diretor artístico na maison Jean Patou, baluarte da alta-costura parisiense à época. Começou a colaborar com a Chloé em 1964 e, em 1967, foi contratado pela Fendi para modernizar a casa especializada em peles. A entrada na Chanel marcaria a transição de couturier para diretor artístico de uma grife de prêt-à-porter.
Visionário, Lagerfeld tornou a moda mais pop e criou um personagem ora fascinante por sua mente fervilhante de novas ideias, ora detestável por suas frases icônicas, de gosto muitas vezes duvidoso. Misógino, gordofóbico – além de disparar contra mulheres curvilíneas, ele emagreceu mais de 40 quilos para caber nas roupas da Dior Homme, então assinada pelo amigo Hedi Slimane –, racista e islamofóbico são alguns dos adjetivos atribuídos a ele.

Sem falar da ousadia em peitar ativistas e uma parcela mais consciente da moda e seguir usando peles naturais em suas coleções. O politicamente correto passou longe de Karl Lagerfeld, é fato. Mas ao fazer de sua imagem uma assinatura desdobrada em caricaturas de si mesmo, com produtos baratos para consumo imediato de uma parcela de clientes que não podia comprar suas roupas, ele, de certa forma, democratizou o acesso ao universo do luxo.

Por meio de uma caneca, de uma garrafa de Coca-Cola, de um CD com suas músicas preferidas, um chaveiro ou com uma peça da H&M – ele foi o primeiro big name a colaborar com uma rede de fast fashion, em 2004 –, era possível participar do show e se aproximar do ícone. Assim como eu fiz em Paris, há cinco anos.
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