
Retrato de Elsa Schiaparelli por Marcel Vertès, publicado na Harper’s Bazaar em março de 1938 (Créditos: The Hearst Archives)
Alguns nomes da moda são descobertos apenas para serem esquecidos. Outros, acabam redescobertos e revividos no imaginário fashionista através de gerações. É o caso de Elsa Schiaparelli, a italiana surrealista que, em suas colaborações com artistas, inovações têxteis e estilo de vida excêntrico encantou a moda no século passado e se tornou obsessão entre a Gen-Z graças às criações de Daniel Roseberry, o atual diretor criativo da maison que encontrou na fundadora uma personagem digna a ser revivida como ícone moderno.
Como o título de moda mais longevo do mundo, com mais de 156 de história, Harper’s Bazaar assistiu de perto e liderou verdadeiras revoluções do universo fashion internacional. Muitos, naturalmente, direto de Paris, onde ‘Schiap’ (como ficou apelidada), abriu sua casa de alta-costura em 1927. Inovadora e incansavelmente criativa, deu rumos inimagináveis para a moda nas quase três décadas em que trabalhou, antes de se aposentar definitivamente em 1954. Em novembro de 2023, sua morte completa 50 anos, enquanto o retorno de sua etiqueta celebra uma década, quando Marco Zanini foi anunciado, em 2013, como o designer responsável por revitalizar o legado da estilista.

Capa da Harper’s Bazaar Brasil, julho de 2023, com look Schiaparelli assinado por Daniel Roseberry (Foto: Jacob & Carrol/Modelo: Anita Pozzo/Styling: Aki Maesato)
Sua era durou apenas um ano, enquanto Bertrand Guyon, seu sucessor, se manteve no posto por cinco. Nenhum dos dois, apesar de portfólios brilhantes, foi incapaz de antecipar o sucesso que Roseberry, nomeado para liderar a maison em 2019. De lá, o texano passou de “aposta” para o “queridinho máximo da moda”, com designs ousados (alguns até polêmicos) que mergulham no repertório surrealista de Schiaparelli. Tão nostálgicas quanto modernas, suas criações viraram o sonho de stylists e editores a fim de criar imagens para marcar época, como a capa da edição de julho da Harper’s Bazaar Brasil, clicada em meio ao agito de Nova York.

Criação de Elsa Schiaparelli, fotografada por George Hoyningen-Huene e publicada na Harper’s Bazaar em setembro de 1939 (Créditos: The Hearst Archives)
Para o momento, foi a culminação de um flerte célebre. Em novembro de 1934, nas páginas da edição americana de Bazaar, Schiaparelli figurou como uma entre “Os Grandes Dez“, em uma matéria inédita que reuniu os perfis dos principais estilistas do tempo. Madeleine Vionnet foi descrita como “a melhor de todas”, mas Elsa foi honrada como “o talento mais ousado e original do mundo (…), com energia infindável e senso maravilhosamente fecundo de invenção moderna (…). Nas cores, ela é a versão feminina de Paul Poiret e sua silhueta carrega uma assinatura tão arquitetural quanto um arranha-céu. Seu críticos dizem que suas roupas são difíceis de usar, mas seus entusiastas se recusam a acreditar”.

Diana Vreeland, editora de moda da Harper’s Bazaar, vestindo uma criação de Elsa Schiaparelli. Fotografada por Louise Dahl-Wolfe, publicada na Harper’s Bazaar em abril de 1937 (Créditos: The Hearst Archives)
De fato, a experimentação de Schiap com design e tecidos inovadores trouxe destaque para suas criações. Os vestidos de Selitose, por exemplo, feitos em celofanes coloridos e transparentes, conquistaram até mesmo Diana Vreeland, a lendária editora de moda de Bazaar. Em uma das anedotas dramáticas de sua vida, um de seus vestidos de celofane criados por Schiaparelli acabou sendo destruído em uma lavanderia. “Desapareceu! Simplesmente desapareceu na névoa”, ela contou para amigos. Apesar de se dedicar aos bastidores, Vreeland não era estranha à aparecer como modelo em editoriais e, em abril de 1937, posou para Louise Dahl-Wolfe vestindo uma criação de Schiaparelli.

Nota sobre as criações esportivas de Elsa Schiaparelli, publicada na Harper’s Bazaar em março de 1928 (Créditos: The Hearst Archives)
Outros editores e personalidades da Harper’s Bazaar também tiveram influências profundas no trabalho de Elsa. A editora de moda da publicação na França, Daisy Fellowes, era considerada uma das mulheres mais elegantes do mundo e usou, em 1935 (mesmo ano em que Schiaparelli inaugurou sua boutique na Place Vendôme), a “Capa Veneziana” durante uma premiação na capital francesa. O modelo, da coleção de outono-inverno, era produzido em tafetá Simoun, assinado pela tecelagem Bianchini-Férier, com a qual a estilista trabalhava com exclusividade e foi um sucesso absoluto. Sua aparição na mídica aconteceu na edição de julho/1935 da Harper’s Bazaar em uma ilustração de Kees Van Dongen e, mais tarde, foi vestido por outras três mulheres célebres, as socialites Madeline Dittenhofer, Lady Mendl e a Condessa Gabriella di Robilant.
Ilustrações, aliás, foram parte central da presença de Schiaparelli nas páginas de Bazaar. O francês Raoul Dufy ficou famoso por desenhar seus salões e apresentações de couture em 1936, enquanto Marcel Vertès a retratou de maneira colorida para a revista, em março de 1938. Alexey Brodovitch, o lendário diretor de arte da publicação nos Estados Unidos, atraiu diversos artistas para o círculo estético de Schiap, como Giorgio de Chirico, Miguel Covarrubias, Cassandre (que, mais tarde, criou o logo de Yves Saint Laurent) e a argentina Leonir Fini, que desenhavam caixas de chapéus para os modelos excêntricos de Schiaparelli. Em 1937, Fini foi a responsável por projetar o frasco e embalagem do icônico perfume Shocking da designer, em rosa-choque, no formato do corpo da atriz Mae West. Três anos mais tarde, em março de 1940, ela ilustrou criações inéditas da estilista para Bazaar.
Christian Bérard também se destacou entre os ilustradores de Elsa para o título e, mesmo depois de deixá-lo em 1935, continuou enviando seus rascunhos em segredo sob o pseudônimo ‘Sam’. De todos, porém, o “triângulo amoroso” entre Elsa Schiaparelli, a Harper’s Bazaar e Jean Cocteau talvez tenha sido o mais prolífico. Multidisciplinar, o francês desenhou visuais celebrados da estilista em 1937 (como um conjunto cinza bordado pelo ateliê Lesage, em julho) e escreveu sobre seu trabalho na mesma edição: “Schiaparelli é, acima de tudo, uma modista de excentricidade. (…) Seu endereço na Place Vendôme é como o laboratório do diabo. Mulheres vão até lá e caem em uma armadilha, saindo mascaradas, disfarçadas, deformadas, reformadas, de acordo com as vontades de Elsa.” Anos mais tarde, a designer criou os figurinos para a peça “Os Monstros Sagrados” de Cocteau, fotografados por Man Ray na atriz Jany Holt e publicados na edição de abril/1940 de Bazaar.
Fotógrafos também foram essenciais na eternização do estilo de Schiap na revista. Apesar de sua relação pessoal conturbada com a estilista, Man Ray a retratou mais de vinte vezes para Bazaar ao longo da década de 1930, além de ter fotografado suas coleções outras dezesseis – um recorde, comparado às seis em que clicou Chanel e apenas duas em que capturou Lanvin. Mulheres como Bettina Jones-Bergery e Nusch Éluard – esposa do poeta Paul Éluard – foram igualmente musas do fotógrafo, vestindo Schiaparelli.
Em um ritmo ainda mais acelerado, o barão russo George Hoyning-Huene foi o responsável por outras das muitas das fotografias icônicas com criações de Elsa nas páginas da Harper’s Bazaar. Em setembro de 1939, ele clicou chapéus de pele de leopardo (entre as primeiras na história da couture) e, um ano depois, a atriz vencedora do Oscar, Vivien Leigh, posou em um “vestido de seda azul vívida, pincelado por flores fúcsia”. Entre suas imagens marcantes, Huene também fotografou as máscaras com cílios surrealistas que o britânico Derek Hill criou para a coleção de alta-costura de 1935 de Schiaparelli, apenas uma temporada após Bazaar descrever a estilista como “o talento mais ousado e original da moda francesa, com energia vulcânica e um fantástico senso de inovação moderna”.
Elsa, enfim, não foi apenas um mito nas páginas da revista. Na vida pessoal, criou amizades e relações importantes com figuras que marcaram a história da moda e da Harper’s Bazaar. Além de Diana Vreeland e Carmel Snow, Schiaparelli nutriu uma amizade profunda com Frances Rodney, a editora-chefe da edição britânica que recebia frequentemente a estilista como convidada em seu castelo na Escócia, onde um dos cômodos era pintado de rosa-choque em homenagem à designer.
Já se passou meio século desde a morte de Schiaparelli, mas seu surrealismo fashion parece cada vez mais moderno nas passarelas. Um atrevimento sedutor, impossível de ignorar. Não é muito “How Bazaar!”?