O ar quase parece lhe faltar em meio às correrias impostas para que a sua empreitada sobreviva à ferocidade fashion. O mercado da moda, definitivamente, não é para amadores. Tem que ter foco e vontade esculpida na paciência para resistir a tantos obstáculos. Mas Denise Salles, nascida na periferia da capital da Bahia, formada no curso técnico de Produção de Moda pelo Senac e em Gestão e Design de Moda pela Universidade de Salvador, e com mais de uma década de expertise dedicada ao mercado varejista do segmento, abriu novas frentes de atuação nos circuitos das artes têxteis e das pesquisas de tendências e de comportamentos.
Mas não pense que foi fácil furar a bolha da branquitude, já que ela teve que encarar todo o ensino acadêmico sem se sentir parte do grupo. “Havia apenas eu e mais um aluno preto, ambos vindos de comunidades e que estavam ali graças ao FIES [fundo de financiamento estudantil]. E o que nos enfraquecia era justamente não nos vermos dentro daquele contexto em que as atividades e os projetos propostos eram voltados aos ricos e aos viajados das classes abastadas. Quando eu apresentava estéticas sacadas da minha trajetória de vida, as referências imagéticas não eram assimiladas e, para piorar, sofriam o apagamento do sistema elitizado. A partir de então, passei a trazer como narrativa os atravessamentos violentos do meu corpo preto, e é óbvio que isso foi visto como provocação.”
Depois de ser contestada, ela foi plagiada por um professor, invalidada no meio acadêmico e ainda teve que ver o nome da grife criada por ela ir parar no portfólio de outra estilista. Denise, por pouco, não desistiu – porém, foi dessas dores que ela partiu para um curso de design no Rio de Janeiro. “Naquele momento, percebi que o experimentalismo têxtil e as memórias afetivas eram os fios condutores do meu trabalho. E por conta da dedicação e até do exagero, pois uma mulher preta precisa se provar melhor dez vezes mais do que uma branca, ganhei destaque na área. Porém, nem isso me blindou de outros roubos intelectuais. Na pandemia, o escritório reduziu os profissionais e tive que retornar a Salvador. Ao buscar conselhos com o meu pai de santo, pois sou candomblecista, o Exu dele – chamado Boca Rica -, disse: ‘não dá mais para você não ter o seu negócio. Se me permite, o batize de Oroomin e vá ao encontro daquilo que é seu por direito’. E foi exatamente o que fiz.”
Hoje, ela comanda o estúdio-ateliê vanguardista nomeado com a junção de duas palavras em iorubá, que formam a expressão “desvendando os mistérios das águas com as mãos” -, onde faz testes e cria conceitos inventivos e necessários para romper com a mesmice fashionista. No ano passado, Denise debutou na Casa de Criadores com um discurso que alinha potencialidade e existência plural.
Guiada pela “Teoria da Busca Pelo Erro Perfeito”, a designer passeia pelas tramas entrelaçadas na própria ancestralidade, nas formas supergeometrizadas e nos coloridos pulsantes dos néons. “A ‘Oro’ é uma extensão de mim; é a minha criança ferida. Pessoas pretas não têm direito à infância, precisam crescer muito rápido, trabalhar muito rápido, porque é uma construção social e cultural. O corpo preto não tem acesso e nem oportunidade de pensar o que fazer no futuro. O ingresso à arte não chega às periferias. A ‘Oro’ não é sobre a roupa, é sobre a construção do imaginário”, diz.
E aí entram em cena os enredos que tomam conta da ‘materialização da espiritualidade que corre às margens da indústria tradicional’, e que abordam temas ora perturbadores, ora fundamentais, ora subjetivos, propondo traduzir a “Puta Conceitual” e o “Menor Fora da Lei”, validando o talento coletivo – e tudo isso sob o olhar e a bênção de Exu Boca Rica.