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Por Pedro Loureiro*
A primeira vez que coloquei os olhos em Elza Soares (1930 – 2022) foi na atriz, não na cantora. Não recordo o nome do filme, mas ela contracenava com Mazzaropi. Eu era criança, assistindo ao Corujão (Globo), quando passavam filmes brasileiros na madrugada e eu adorava. Lembro direitinho da cena com ela em um vestido de franjinha – guardado no acervo até hoje. Não sei explicar, mas tinha uma familiaridade grande e, ao mesmo tempo, uma admiração distante. Sou da década de 1980 e não tinha essa facilidade dos serviços de streaming. Naquela época, ficava de olho na programação para encontrar algum filme com ela. E a consumia como a maior parte dos brasileiros: o canto, o samba incrível, a voz rouca rascante e o sketch singer.
A vida me colocou em frente a esse monumento quando a contratei para fazer uma apresentação em uma casa de shows na minha natal Belo Horizonte. E a identificação foi imediata, pelo olhar. No começo, ainda me chamava de menino. Nos falamos algumas vezes e, quando ia a BH, fazia questão de me ver. Vou ser ousado ao ponto de falar que começamos ali uma amizade. Porque, naquele momento, eu conhecia a Elza Soares, mas ainda não podia me considerar amigo.

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A vida seguiu seu fluxo e, um belo dia, recebi uma ligação, com ela cantando “Você é Lindo”, uma versão adaptada para a música do Caetano Veloso. Ela ouviu meu “oi, tudo bem?”, não me deu boa noite, cantou e desligou. Bem Elza! Dessa forma, fomos construindo uma amizade íntima. Em outro show, já no Rio de Janeiro, ela fez um almoço em sua casa e ali me disse que mudaríamos a vida um do outro. Fiquei sem entender. Mas, a partir daí, a gente começou a mergulhar na intimidade sem pudor, amarras nem barreiras na alma um do outro e foi assim, diariamente, nos sete anos que antecederam sua partida (em janeiro de 2022). Não vou contar a história do Pedro empresário. Essa, todo mundo conhece. Vou falar do amigo, filho (de coração), às vezes até pai – com todo respeito e carinho.
Em todo momento, era uma pessoa que transcendia a artista. Brincava, inclusive, que eram duas: Conceição (seu sobrenome) e a Elza Soares. Quando estava produzida, maquiada, cabelo feito e figurino era a artista. O olhar era diferente, o jeito de falar e de se movimentar. Quando em casa, na intimidade, era a Conceição. Ali, podia ser uma figura comum. Um lado brincalhão, risonho, piadista e humor inteligente, muito sorridente, tranquila e discreta. E pensativa.
Ela morava em frente ao Posto 4, na praia de Copacabana. Ficava horas sentada no sofá, olhando a movimentação e o mar pelo janelão de vidro. Uma preta rica, como ela quis ser. Às vezes, sentava ao lado dela, trabalhando ao celular, e ela observando. Discreta, passava tudo pela cabeça dela. De repente, vinha uma pérola boa. Esse alter ego me ligava todo santo dia para saber se eu tinha bebido água ao acordar. Sempre muito ligada à saúde, esporte e bem-estar, tinha as dicas com coisas que tinha feito a vida inteira e havia dado certo. Treinar musculação, por exemplo, é uma dessas. E falava que aquilo havia sido a poupança para seguir com o corpo tonificado, firme, segurando bem a vida. E eu ligava para a Conceição, para saber se ela tinha tomado os remédios, se tinha comido bem ou almoçado.

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A relação entre Pedro e Elza é íntima e, sim, a gente mudou a vida um do outro. Falo isso despretensiosamente porque não é sobre o trabalho, é sobre o amor. Sempre parei tudo para ir vê-la, escutá-la… Quando chegava em seu apartamento, pedia para prepararem bolinho de chuva ou queijo com uma compota (de frutas) porque queria comer comigo. Era divino e são desses momentos que mais sinto falta. Outras vezes, mandava mensagem pedindo para falar “um pouquinho urgente”. Isso porque havia tido uma ideia para um disco, música ou tema para campanha. Também pedia para sentar com ela e assistir a um filme de bang-bang. Adorava filmes do Velho Oeste. Ou, então, para escutar o trompetista Chet Baker.
Depois, fui entender. Era a forma de me tirar do torpor do trabalho, porque sou um workaholic e sempre lutou contra. Não no sentido negativo, mas me falava: “Pedro, a vida me ensinou que a gente precisa ter tempo para viver, curtir e descansar. E isso é uma coisa que você ainda não sabe fazer”. Depois de me mudar de “Beagá” para o Rio, sair do bairro do Recreio dos Bandeirantes para Copacabana a fim de ficar mais próximo dela, mais uma vez, fui lá e mudei a vida por ela.

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Uma vez me disse, e tenho isso gravado, que me amava como poucas pessoas nesse mundo. O fato de ter me deixado no testamento como gestor exclusivo do legado artístico é uma prova de amor. Mas, ao me ligar para saber se havia bebido água, era prova de amor cabal. A gente se amou muito, a gente se ama muito. Dediquei minha vida à ela. E a gente não se cansou, não se cansa e quando a Elza se encantou, segui. Porque havia prometido não parar. A frase em sua lápide, e do encarte do recém-lançado álbum “No Tempo da Intolerância”, diz mais ou menos assim: “Elza viveu, amou, foi amada, foi feliz e cantou até o fim. E, no fim, recomeçou”. Não há fim para ela. Se você falar o nome dela, todo mundo vai saber quem é até o fim dos tempos. É minha batalha, objetivo e luta. Pela mulher genial, pelas injustiças e pelas conquistas. Alguém que me ensinou tudo sobre a vida, amor, amizade e autocuidado. Além do trabalho, me ensinou sobre música, humildade, letramento racial, lutas feminista e feminina. Uma professora, amiga e grande irmã.
O novo disco é como uma aliança. Porque ela brincava que a gente era casado, e, se a gente for pensar bem, o trabalho acaba sendo um matrimônio. Esse álbum é uma aliança porque quando ela começou a compor, bem antes de “A Mulher do Fim do Mundo” (2015), tinha o desejo de fazer um disco bem carioca, pautado pela black music, soul e bastante dançante. Com inspiração nos bailes charmes do Rio, trio de metais, dedicado à celebração do povo preto e à luta, principalmente a mulher preta. Na pandemia, me confessou que gostaria de ter um álbum onde fosse compositora da maior parte das músicas. E dei a ideia de acessarmos o famoso caderno de composições e anotações de sua vida. Ela adorou. Demos muitas risadas porque tinha desde lista de compras na feira, que virou música, a cartinhas picantes para os namorados.
Para mim, ela era igual a um felino. Às vezes, estava com as garras bem apontadas, saltadas, pronta para lutar, e, às vezes, uma gatinha manhosa. Ela adorava isso porque, quando era jovem, tinha apelido de pantera negra. Meio gato. Nossa intimidade era muito gostosa. Somos felizes, no sentido do presente. Elza é um presente para mim e me chamava de “Meu Pois é”, apelido dado em tom de brincadeira quando a plateia concordou, certa vez, quando ela me chamou de lindo e ela respondeu “pois é”….
(*Depoimento a André Aloi)

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