
Detalhe da piscina original do projeto – Foto: Marcio Simnch, com direção criativa de Kleber Matheus, direção de arte de Victor Endo, coordenação Mariana Simon e retoque Eddie Mendes
Por Paula Jaycob
Escondida por uma fachada bem tradicional de bairro e algumas árvores, no Alto da Boa Vista, em São Paulo, a Casa Domschke se abre para os olhos dos mais atentos. A construção de 1974 é assinada por ninguém menos que João Batista Vilanova Artigas, premiado arquiteto e professor (falecido precocemente em 1985), líder vanguardista da Escola Paulista – parcela da produção moderna nacional. A obra não foi para si, mas para a família do engenheiro Alfred Domschke. Ele, que foi seu aluno durante a graduação na Escola Politécnica da USP, fez um primeiro rascunho daquilo que imaginava para o terreno e foi mostrar ao ex-professor a sua ideia. Artigas logo aceitou o desafio. “Meu pai era muito inventivo e, encorajado pela minha mãe, foi conversar com ele para apresentar o esboço que tinha feito. O Artigas logo dobrou o papel e colocou no bolso, deu dois tapas no ombro do meu pai e disse: ‘Deixa que eu cuido disso’”, conta, rindo, Gisela Domschke, artista, curadora e gestora cultural, a mais nova das quatro filhas de Alfred e Lydia, que tiveram também Lélia, Vera e Luciana.
Alfred morava a uma quadra do Artigas e ia semanalmente na residência do arquiteto para discutir o projeto. Assim, acabaram criando uma relação de amizade e as famílias se aproximaram. Aos finais de semana, o engenheiro colocava seu macacão característico e ia para a obra acompanhar os detalhes e fazer ele mesmo várias coisas. “Ele me trazia junto, devia ter uns 6 anos de idade, e lembro de até ajudar a puxar fios nos conduítes. Foi muito interessante ver a obra em processo. Quando a piscina ficou pronta, por exemplo, já encheram de água para evitar rachaduras no concreto e, é claro, a gente criança vinha nadar, mesmo com a casa ainda por finalizar”, Gisela se diverte com as memórias. Inclusive, a ideia inicial era pintar o fundo da piscina com cores vibrantes, que marcaram a carreira de Artigas – e que aparecem, por exemplo, nos banheiros das suítes de maneira surpreendente –, mas com o uso, a matriarca, bióloga, achou mais bonito manter daquele jeito, cru, e cercou a área de lazer externa com plantas e árvores frutíferas das mais variadas, de jabuticabeira a amora silvestre. “Ela gostava porque ali parecia um lago.” Na parte interna da casa, três pavimentos se conectam com o exterior por meio das grandes janelas.
No lugar de paredes que isolariam completamente a sala de jantar do corredor ou mesmo da sala de estar, no último piso, as vigas de concreto liso aparente terminam num entremeio, permitindo a presença de iluminação natural e a integração nada óbvia entre os espaços. Os móveis são todos originais dos anos 1970, inclusive a cozinha caramelo da Kitchens permanece intacta – tirando o fogão que precisou ser trocado por questões de segurança. No espaço de jantar, as cadeiras Thonet, da Gerdau, chamam a atenção pela palhinha em rosa no assento, escolha de Artigas. Passando para o andar de cima, o espaço de estar, mantido até hoje na disposição pensada pelo arquiteto, tem piano de cauda, lareira de concreto, uma mesa de centro desenhada por ele e poltronas Le Corbusier também originais da Forma, de 1970. Os quartos, separados por uma porta da área íntima, se revelam a partir de um longo corredor. Por trás de cada porta, um cômodo ainda decorado com o mobiliário da época em que a casa ficou pronta, sobre um carpete bege. “A cama dos meus pais é a mesma, desde o casamento deles, na década de 1950”, diz Gisela, enfatizando o respeito que a família sempre teve com a preservação da casa, dos móveis e objetos, até mesmo dos brinquedos. “Estão todos guardados.” Crescer em meio a tudo isso, segundo ela, foi um convite à arte. Seus pais incentivaram encontros e atividades criativas, tanto que todas as quatro filhas, há de se imaginar, têm alguma veia artística pulsando até hoje. “Fomos criadas com muita liberdade, pudemos aproveitar bastante a casa, e os nossos filhos também”, diz. “A minha irmã Vera faz aniversário no dia primeiro de janeiro, então a festa da virada de Ano Novo era sempre aqui. Víamos o sol nascer da laje e fazíamos da sala de jantar a pista de dança”, relembra.
Após o falecimento dos pais (a mãe morreu em 2022), as quatro filhas se viram diante da decisão difícil do que fazer com o ícone arquitetônico. De uma visita ao Aberto 01, exposição pensada dentro de uma casa de Oscar Niemeyer, Gisela conheceu o idealizador, Filipe de Assis, e sugeriu que a segunda edição fosse feita na Casa Domschke. Assim, a Aberto 02, evento curado por ele ao lado de Claudia Moreira Salles e Kiki Mazzucchelli, que durou entre agosto e setembro de 2023, preencheu todos os ambientes da residência com mais de 70 obras de artistas como Tarsila do Amaral, Anna Maria Maiolino, Tunga, Lygia Clark e mais. “Ocupar a casa com cultura: não teria coisa melhor. Essa casa era o projeto de vida dos meus pais, penso que eles iriam gostar disso. É também uma forma de abri-la para visitação com um propósito”, comenta Gisela. A ideia da família, agora, é encontrar outras iniciativas dispostas a dar novo significado para essa história. “A Aberto 02 foi uma forma feliz de mudarmos o uso da residência. Era um passo que tínhamos de dar. Por isso, estamos também dispostas a novas propostas, desde que mantenha o projeto original, claro.” Um novo capítulo há de surgir.