
Foto: Gabriel Ramos
Por Amanda Ferber
Na maior parte das coisas da vida, a mudança começa de dentro para fora. Mas quando pensei em escrever sobre “o futuro do morar”, percebi que talvez essa seja uma das poucas áreas em que o movimento deveria ser o contrário: não dá para pensar o “dentro” sem, antes, se preocupar com o “fora”.
Num fórum internacional de arquitetura em que estive no MASP, em agosto, uma palestra em especial mexeu comigo: a do arquiteto e urbanista dinamarquês Adam Kurdahl, fundador do estúdio SPOL. Apaixonado pelo Brasil e vivendo aqui já há alguns anos, Adam é uma das pessoas que conheço que mais acreditam que o futuro pode estar neste país. Sua palestra “São Paulo 2035! Sul Global, capital do mundo”, trouxe uma provocação certeira: o que mais importa não é apenas a arquitetura em si, mas o espaço entre as arquiteturas. É ali que a vida acontece.
Ou seja: não há como falar de “morar” sem falar de cidades. E deixo claro: minha intenção aqui não é trazer soluções prontas. Até porque, se alguém tivesse todas as respostas para os desafios de cidades como São Paulo (ou tantas outras brasileiras) certamente algo além já estaria acontecendo. O que quero é provocar. Refletir. Fazer com que a gente se pergunte: em que ponto estamos dessa longa jornada rumo a cidades melhores?
A visão de Adam ressoou profundamente em mim. Muitas vezes, nós arquitetos nos concentramos na obra em si: uma casa, um edifício, um interior. E esquecemos da sua relação com a cidade. Mas quando projetamos uma casa, não a desenhamos apenas para a família que a habitará agora, nem para as que virão no futuro. Projetamos também para os milhares (ou milhões) de pessoas que passarão diante dela por anos, décadas. Em outras escalas do design, como uma joia, um móvel, uma peça de vestuário… quando alguma dessas mal concebida há um certo impacto, claro. Mas uma arquitetura mal projetada reverbera enquanto existir. E até mesmo depois de demolida, continuará impactando, influenciando o que veio e virá ao seu redor.
Adam lembrou de exemplos de transformações urbanísticas. Nova York, que há três décadas era uma das cidades mais violentas do mundo, chegou a se tornar símbolo de vitalidade urbana, apesar do momento crítico que a cidade enfrenta atualmente. Copenhague, referência atual de qualidade de vida e urbanismo, também nem sempre foi esse modelo.Copenhague, referência atual de qualidade de vida e urbanismo, nem sempre foi esse modelo. Essas cidades acreditaram em futuros possíveis e investiram naquilo que mais transforma: o urbanismo.
Na faculdade, lembro-me de ouvir sobre o conceito dos “olhos da rua”, de Jane Jacobs. Fachadas ativas, edifícios que dialogam com o pedestre, ruas que convidam ao encontro. O contrário disso, como os muros cegos, cria espaços de exclusão. Ilusoriamente, transmitem segurança a quem está dentro, mas, na prática, tornam o lado de fora mais inseguro, protegido apenas para a ação de algum mal-intencionado.
Em São Paulo, apesar de avanços no zoneamento e de incentivos recentes para fachadas ativas, vemos muitas vezes o efeito oposto ao desejado: espaços de comércio criados de forma quase meramente protocolar, sem uma real preocupação em viabilizar usos. O resultado são áreas com aluguéis inviáveis ou condições pouco atrativas para empreendedores, que permanecem vazias ou abandonadas. E isso é particularmente preocupante, porque a intenção era gerar vitalidade urbana, mas, na prática, acabamos criando novos vazios. É um tema sério demais para caber em um parágrafo e talvez até mereça uma reflexão dedicada, mais profunda, em outro momento.
Não é à toa que tanto se fala, no Brasil, do prazer de andar pelas ruas de cidades europeias ou, em alguns casos, americanas. Muitos brasileiros valorizam isso em viagens de férias: caminhar em Paris, em Barcelona, em Nova York… Mas quando se trata de trazer propostas semelhantes para cá, como mais transporte público, parques lineares, espaços para pedestres, e menos prioridade ao carro, muitas dessas mesmas pessoas resistem à mudança. Por que será que isso acontece?
Durante a “3daysofdesign”, a semana de design de Copenhague, vivi isso em primeira mão. Circulamos de metrô, de bicicleta, a pé e até de barco. Tudo de forma natural. Percebi que o design não estava apenas nos objetos expostos, mas no desenho e experiência da própria cidade. A Dinamarca, e Copenhague em especial, abraçam o design em todas as suas escalas: do urbanismo à arquitetura, do mobiliário ao objeto, até o gráfico.
Claro, os contextos sociais, políticos e econômicos de Copenhague ou Nova York são muito diferentes dos de São Paulo. E seria ingênuo ignorar isso. Mas se há um futuro possível para São Paulo (e para tantas cidades brasileiras), ele começa com uma preocupação genuína com o urbanismo. Com os espaços entre arquiteturas. Porque é nesses intervalos que acontece a vida urbana, que floresce a convivência, que nasce o futuro do morar.
Quando se trata do morar, a mudança sempre será (e sempre terá que ser) de fora para dentro. E talvez a verdadeira questão que devamos nos fazer seja: que futuros possíveis estamos dispostos a construir para as nossas cidades?
Amanda Ferber é fundadora e CEO do Architecture Hunter, plataforma de arquitetura e design com audiência global de mais de 3,5 milhões de pessoas.

