
Alba Clemente, em 1985, clicada por Robert Mapplethorpe em uma sessão cheia de segredos – Foto: Robert Mapplethorpe/Divulgação; Alba Clemente, 1985 © Fundação Robert Mapplethorpe. Imagem usada sob autorização
“Já nos vimos antes? Tenho a impressão de já termos nos encontrado em Nova York… ou no Rio de Janeiro”. Não é impossível, mas pouco provável. Eu teria lembrado da mulher que, do topo da escada, vestida de preto da cabeça aos pés, e com uma máscara de Man Ray nas mãos (a icônica Optic Topic, de 1974), me perguntou isso. Nem sequer tive tempo de responder, antes da exclamação –”estou com calor!”. Assim, com um giro rápido, Alba Clemente, musa de lendas como Andy Warhol, Robert Mapplethorpe e Jean-Michel Basquiat, desapareceu entre os corredores. Voltou completamente transformada, mais leve e igualmente glamorosa, com uma proposta irrecusável: “Vamos sentar lá fora, no ar fresco, e te conto tudo o que quiser saber”. E não é que foi tudo mesmo?
Antes de revelar as confissões, se faz necessário explicar o que ela e eu estávamos fazendo ali. Pela primeira vez, aos 73 anos, a italiana não apenas descobria São Paulo, mas estava nos preparativos de uma exposição inédita, “Messinscena”, com desenhos e pinturas autorais. Tudo no Auroras, espaço de artes descolado e escondido, no Morumbi. Ela, artista nata que vive nos palcos como atriz de teatro, adora o público. Eu, jornalista curioso e inconformado, prefiro bem mais a intimidade. O equilíbrio foi perfeito e, fugindo ao costume, nem tivemos que “quebrar o gelo”. Fui direto às perguntas mais urgentes. Vi que muitos dos seus trabalhos têm cigarros representados… mas e maconha, você já fumou? Ela riu. “É claro! Já experimentei de tudo”, confessa. Com um respiro profundo, se corrige: “Quer dizer, não tudo… Usei cocaína, mas não durou muito porque o pó transforma as pessoas em ególatras e eu gosto de ser humilde”. O tom é irônico, mas sincero – diz até que, não fosse pelos pulmões, adoraria continuar fumando marijuana. Alba Clemente começou a fumar aos oito anos de idade, um dos alguns muitos traços de rebeldia que a tornaram irresistível para a cena artística. Aos sete anos, já fazia espetáculos de marionetes na porta de casa para amigos e vizinhos. Era isso ou desenhar. Só parou quando pisou em um palco pela primeira vez… E depois? “Depois, minha vida começou”.
Ouvi tudo, dito com o sotaque italiano forte que nunca perdeu. E já estava preparado para a próxima pergunta quando fui interrompido por sinos de igreja violentos – era o toque de celular de Alba. Ela preferiu ignorar, mas eu não consegui. Para a mulher que posou nua para Andy Warhol, usando apenas um crucifixo, um ringtone eclesiástico soava curioso, para não dizer excêntrico. Tive que perguntar sobre. “Cresci muito religiosa”, justifica, lembrando a infância em Amalfi, na Itália, “mas parei de acreditar em tudo quando virei adolescente”. Para a avó, o ateísmo repentino foi um susto, assim como sua decisão de raspar, aos 11 anos, todo o cabelo. “Eu parecia um carrettieri! Cortei minhas tranças e ela quase desmaiou.”
Por quê? “Porque sempre fui anticonformista”. Por quê? “Porque gosto de quebrar com a tradição”. Por quê? “Porque a formalidade burguesa me incomoda”. Por quê? “Porque sempre fui política.” Pronto! Alba não é uma rebelde sem causa. Dos nove aos 20 anos, lembra, só sabia falar de teatro e política. Diz que ainda é assim, mas já não sabe muito bem o que a segunda parte significa. “Entendi, pequena, que eu era de esquerda, mas não sei mais o que isso representa hoje”. O teatro, ao contrário, continua fazendo todo o sentido. “Ah, o teatro…”. Quando a palavra vem à boca, Alba suspira e saliva. Viveu nos palcos e pelos palcos, sempre em busca de mais. Na adolescência, achando que a Costa Amalfitana era muito pequena, partiu para Nápoles, onde frequentou a Academia de Belas Artes e estudou design de figurino e cenário. Ao mesmo tempo, atuava em produções variadas, de “Salomé”, de Oscar Wilde, a “Don Giovanni”, de Molière. Só aos 23 anos, em Roma, conseguiu seu primeiro papel principal, em “O Despertar da Primavera”, de Frank Wedekind.
Com muito motivo para comemorar a estreia, decidiu antecipar o jantar em um café literário da capital italiana. Ali, conheceu um menino “um ano mais velho” e “foi amor à primeira vista”. Foram para uma festa na casa dele e “eu fingi dormir no sofá só para não ter que ir embora”. O rapazote era Francesco Clemente, artista. De paixão tórrida, o romance ficou sério rápido. Alba engravidou poucos meses depois e, rejeitada pelos pais, decidiu tentar a vida com o moço. Nunca mais se separaram. “Foi há 47 anos”, ela lembra, enquanto ignora as chamadas da filha no telefone-católico.
Das memórias, fala muito sobre a longa temporada no sul da Índia, onde reaprendeu a se conectar com a espiritualidade: “Não tínhamos um centavo na época e dormíamos no chão de um monastério”. Para a garota que cresceu no auge da efervescência cultural italiana (e com vista para o Mediterrâneo), foi um choque, mas a fase seguinte conseguiu ser “ainda pior, no melhor dos sentidos”. Era 1981 e o casal chegou em Nova York. “Foi a época mais louca de todas! Nada era impossível e todas as portas estavam abertas”, incluindo as das melhores boates. Alba, party-girl irrecuperável, lamenta não ter vivido o frisson completo do Studio 54 (“tudo em NY dura pouco”), mas adorava a cena queer da Paradise Garage, dominada pelo DJ Larry Levan, e a Jackie 60, “onde não se sabia se as pessoas eram homens, mulheres ou vampiros”. Girou, dançou muito e acabou nos estúdios dos maiores artistas da geração.
Hoje, mora na casa que pertenceu a Bob Dylan (“e os turistas se perguntam ‘quem é essa velha?’ toda vez que eu saio pela porta”), mas costumava ser vizinha de Jean-Michel Basquiat, no NoHo. Jovem prodígio, ele a pintou algumas vezes, mas Alba alega que “nem percebia”. Gostava mesmo era de abrir, com ele, as caixinhas de madeira repletas de “coisas proibidas” que chegavam do Havaí. Andy Warhol também fazia parte do círculo íntimo de Clemente, que posou para ele em milhares de fotos instantâneas. “Andy me queria nua e demorei a me convencer disso. Quando decidi aceitar, coloquei o crucifixo para me sentir, ao menos, protegida.” O artista faleceu poucas semanas depois e Alba nunca recebeu a obra final. “Minha melhor amiga, Paige Powell, trabalhava com ele e disse que o estúdio poderia terminar o trabalho. Neguei por achar que não fazia sentido, e hoje é um dos meus maiores arrependimentos.”
Dos grandes artistas, também conviveu com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, padrinho de um de seus filhos. Eram íntimos e, da amizade, Alba contou bastidores escandalosos e impublicáveis. É fácil compreender seu status de musa, mas confessa que nunca entendeu o que isso significa. “Aqueles anos em Nova York foram lindos, mas já passaram.” Ela, entretanto, nunca passou. “Minha vida é uma performance, até minhas roupas são figurinos.” Hoje, passa os dias desenhando sua vida – um lado aflorado nos últimos anos que culminou na exposição, em São Paulo. Também não abandonou os palcos. Adotou o costume de se olhar no espelho sem os óculos. “Tudo fica melhor sem eles!”, explica rindo. Decidiu enfrentar a maturidade sem procedimentos estéticos. “Envelhecer é uma experiência humana e escolhi vivenciá-la.” Pena que Alba não é humana. É divina!