Por Manoela Cesar
Nas quatro primeiras adaptações para o romance “Persuasão”, de Jane Austen, a câmera sempre esteve nas mãos de diretores homens. Pela primeira vez dirigida por uma mulher, a produção que a Netflix apresenta ao mundo, nesta sexta-feira (15.07), conta com o olhar fresco da diretora teatral Carrie Cracknell. Em sua estreia para as telonas, ela se propõe a fazer jus a uma das principais reivindicações da autora neste clássico, publicado, postumamente, em 1817: “que as histórias possam ser contadas pelo ponto de vista feminino”.
A protagonista Annie Elliot ganha versão empoderada na pele de Dakota Johnson. A personagem aposta na veia cômica de Jane e toma para si a responsabilidade de contar sua própria história em um tom quase blogger, que parece ter sido encomendado para atrair a geração TikTok.
Em sintonia com a pegada “Bridgerton”, a Netflix manteve sua escolha por um elenco diverso. Assim, é a primeira vez que atores não-brancos vivem personagens importantes, como os adorados sobrinhos de Annie ou a elegantérrima Lady Russel, interpretada pela nigeriana Nikki Amuka-Bird. As versões anteriores estiveram sob a batuta dos diretores Adrian Shergold (2007), Roger Michelle (1995), Howard Baker (1971) e Campbell Logan (1960).
Espirituosa, nostálgica e resiliente, a protagonista vive o drama de ter sido persuadida por sua família a abrir mão do amor de sua vida, o capitão Wentworth (Cosmo Jarvis) em nome das conveniências sociais. Dakota quebra a quarta parede e não apenas fala, mas pisca (!) diretamente para a câmera, fazendo graça da própria falta de escolha diante de sua jornada. Ela vive descabelada, bebe (bastante) vinho, corre pela grama e ri de sua miserável condição de patinho feio do pai vaidoso, que insiste em não enxergá-la. Muito bem interpretado por Richard E. Grant, o famigerado Walter Elliot representa o atraso, o preconceito e a enorme decadência de uma Aristocracia, que não lhes restou nenhum tostão na conta e a única coisa da qual se gabavam era o sobrenome.
Muito mais do que sobre segundas chances no amor, a adaptação de “Persuasão” fala sobre diferentes narrativas, que vêm na tentativa de corrigir lentes que serviram ao preconceito durante décadas. Se Jane Austen tivesse acesso a uma televisão, divertiria-se em perceber que seu legado revolucionário e cômico está, finalmente, sendo decodificado. Afinal, Jane Austen não escrevia para entreter damas e nobres, não escrevia histórias fofas nem atenderia às expectativas de um príncipe deslumbrado. Pioneira no uso de metalinguagens, tal qual um cavalo de troia, enviava mensagens de insubordinação ao status quo disfarçadas de romances para moças.
Jane Austen era cômica e revolucionária, duas características que podemos reconhecer na adaptação da Netflix. E suas protagonistas exalam estes sentimentos. Ela as faz caminhar, correr, se sujar de lama, como faz a Annie de Dakota. Jane as faz navegar pelo mar ao lado de quem amam, como tão bem inspira a Sra Croft vivida por Agni Scott, mesmo que isso fosse impensável para as damas de sua época. E, se fosse para aceitar uma proposta de casamento, que fosse, unicamente, por amor. “Nunca permitam que lhe digam a quem amar, por menos ortodoxo que seja”, diz o roteiro de Alice Victoria Winslow e Ron Bass, que parece entender o subtexto da obra original, mas peca por não trazer mais frases do livro bastante difundida pelo fandom austeniano.
Me desculpem, mas o filme é, sim, sobre Jane Austen. E honra uma das maiores premissas desta escritora inglesa que, mesmo sem nunca ter saído do interior da Inglaterra, e tendo vivido em uma época em que não existia sequer energia elétrica, consegue pautar umas das maiores produtoras de conteúdo da atualidade e manter seu legado vivo, em nome da igualdade, liberdade e fraternidade para todos e, principalmente, para todas.
Cinco curiosidades sobre o filme
- A produtora executiva Christina Weiss Lurie chegou a cogitar colocar a trama nos tempos atuais. A ideia foi deixada de lado, mas permaneceu o desejo por personagens de ares contemporâneos;
- 7,4 mil xícaras de chá foram consumidas durante a produção;
- O papel de parede do quarto de Anne Elliot tem mais de 300 anos. Porém, o cômodo pertence a uma criança, filha do dono da propriedade, e o papel estava repleto de adesivos da franquia “O Rei Leão”, da Disney;
- Os cineastas optaram por não usar nada em vermelho no cenário e a paleta de cores é bastante contemporânea;
- O figurino também passeou no tempo: os vestidos tiveram a cintura um pouco mais marcada do que se usava no estilo Imperial da época e os uniformes dos militares, como o do capitão Wentworth e o do almirante Croft, não foram montados de acordo com o traje formal.
Manoela Cesar é jornalista à frente do clube de leitura Colher de Chá Books, focado em reunir mulheres para ler mulheres.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Harper’s Bazaar Brasil.





