Detalhes do espaço de Ala d’Amico, exemplo da cena criativa da nova Roma – Foto: Divulgação

Por Hermés Galvão

Nenhuma cidade no mundo tem os desafios de Roma no processo de transição para os tempos contemporâneos. Passos dos habitantes de dois mil anos atrás ainda marcam os caminhos dos cidadãos de hoje; ruínas, às vezes, podem se tornar pedras no caminho rumo à mobilidade e, claro, atrações turísticas bloqueiam o vai e vem de quem não está ali a passeio. Pois bem, em termos urbanos, a capital italiana sempre foi um casino e não é de hoje que suas ruas e vielas varrem a sujeira para as esquinas travertinas e padecem diante da desordem causada por gladiadores vindos de terras distantes – do Imperador Augustus à Tia Augusta, de Caracalla ao Jardim Gedala, mudou a indumentária, mas o desejo de invadi-la permanece irresistível. E tome spritz com pizza às 11h, cappuccino às 16h e gelato de pistache num verde-césio só visto na rave de Caraíva. O cardápio é de amargar, o elenco é de sair correndo, mas o cenário é um tapa na cara da modernidade, que vê beleza em tudo que é caixote de concreto sobre infinity pool.

No protagonismo de uma cidade antes eterna do que morta, uma nova geração de jovens artistas italianos (e não só) têm movido a cena cultural com trabalhos cujo significado traduz o espírito e a estética de um povo acostumado ao belo. Muitos retornaram depois de uma temporada fora da Itália, gente que trouxe na bagagem de mão algum pigmento extra para reforçar, misturar e remexer um caldo com gosto de tudo que já se provou no mundo das artes desde a antiguidade. Com eles, surgem galerias, ateliês e lojas que discretamente fogem do olhar treinado e nada curioso dos turistas em busca de uma nova foto para o perfil do Tinder.

A artista plástica ítalo-brasileira Ala d’Amico, nome por trás da ORME, estúdio de serigrafia cujas obras são narrativas visuais imersivas – Foto: Divulgação

A ítalo-brasileira Ala d’Amico é o nome por trás da ORME, um estúdio de serigrafia localizado próximo à Crypta Balbi. Suas obras são narrativas visuais imersivas, que fazem experiências com imagens e silhuetas; nuances e os mistérios do mundo natural, como rochas, flores e pedras antigas, ganham vida em silkscreens em grafite. É ela quem dá o caminho que nos leva a esta nova Roma, que renasce pela melhor via possível. “Muitas pessoas criativas voltaram depois de anos, há uma sensação de que está acontecendo uma troca de guarda”, conta. “Roma está passando por um verdadeiro restyling para o Jubileu, espero que isso traga aspectos positivos para aqueles que vivem aqui, não apenas para os que estão de passagem. Quanto à identidade, acho que não há nenhuma cidade no mundo como Roma, com suas ruínas, igrejas, ervas daninhas e políticos”.

A arte em tecidos de Zazie Ruscone – Foto: Divulgação

Em Trastevere, três endereços revelam-se por trás das maravilhosas videiras e bounganvílias enroscadas nos fios elétricos do bairro onde ainda resistem e residem artesãos de uma época em que laranja era cor de fachada, não do Aperol. Zazie Gnecchi Ruscone pinta tecidos para vestir casas e quem vive nela também. Há sofás, cadeiras, roupas de linho e seda… tudo feito à mão. “Roma é uma fonte constante de inspiração; suas luzes e cores, mas também sua lentidão, permitiram que eu encontrasse meu próprio ritmo pessoal de vida e trabalho, que não é ditado pelo frenesi moderno”, diz Zazie, franco-italiana que viveu em Paris antes de voltar à sua terra natal. “Roma é, ao mesmo tempo, uma cidade grande, onde ainda posso me perder, apesar de conhecê-la bem, e um vilarejo, onde todos se conhecem e se cumprimentam e há sempre uma demonstração de generosidade e uma troca valiosa. Isso ajuda a evitar a sensação de alienação que muitas vezes se sente em outras metrópoles”.

Perto dali, na Piazza di Santa Maria in Trastevere, onde reside uma das igrejas mais impressionantes entre as mais de 900 existentes na capitale, está o Coletivo Supernova, um espaço multidisciplinar em que acontecem exposições, instalações, leituras e workshops com o objetivo de envolver a comunidade romana e internacional que passa ou vive na cidade. Nota: o Spazio terá apenas três anos de vida para, em seguida, desaparecer com a esperança de deixar algo novo para trás. “Roma é um lugar que nunca se desvencilhará de suas origens e de sua história, mas está encontrando sua nova identidade social e cultural, que coexiste com o passado, mas finalmente tem os meios e o desejo de ultrapassar os limites que se mantiveram até agora. Vejo a Roma contemporânea como curiosa e leve, o que não significa superficial, mas otimista e aberta”, explica o responsável pelo Coletivo.

Ilaria Gianni e Cecilia Canziani, do Spazio IUNO – Foto: Divulgação

Cruzamos o Tevere e chegamos à beira da Piazza Farnese para conhecer Ermes Ermes, galeria de arte contemporânea gerida por Ilaria Leoni, outra grande entusiasta do renascimento cultural romano. “As gerações mais jovens são muito inspiradas e ativas. Há vários espaços administrados por artistas, escolas de arte e moda, oficinas de artesanato e cinema, que são alguns dos setores mais prolíficos da cidade”.

A sede da Litografia Bulla, hoje nas mãos das irmãs Flaminia e Beatrice, um dos ícones do renascimento artístico de Roma – Foto: Divulgação

Subimos em direção à Villa Borghese até chegarmos à Piazza del Popolo, endereço da Litografia Bulla, hoje nas mãos de Flaminia e Beatrice Bulla, sétima geração na linha direta de gravadores de arte. As irmãs dirigem a oficina que está na ativa desde 1818, onde pesquisam diferentes técnicas de impressão com artistas contemporâneos. “Há um foco nas novas gerações, um apreço pelo território e uma redescoberta do artesanato, que anda de mãos dadas com as novas tecnologias. O desafio de Roma também é saber aplicar a visão contemporânea ao seu patrimônio, que é inestimável”.

Flaminia e Beatrice Bulla, da litografia que pertence à sua família desde 1818, dão novos ares à oficina histórica – Foto: Giovanni Peyrone

Roma é grandiosa, histérica, cativante, hipnótica; às vezes passa da conta, do tom, da luz. Ora terracota demais, simples de menos, demasiadamente católica e deliciosamente caótica, o que a faz transitar tenuamente entre o aconchego e o inóspito. Vai daí que, quase até agora, ela esteve fora do radar dos destruidores de lares a quem carinhosamente chamamos de nômades digitais, pois a conexão em Lisboa ou Barcelona parecia melhor.

Agora, quando a Península Ibérica começa a cair em desuso para os caçadores de hype, eis que Roma ensaia sua ária para estrear no século 21 ao terceiro sinal. No palco, há ingleses e alemães atraídos pela nova política de incentivos fiscais para interessados em depositar mais de 200 mil euros nos cofres da cidade, seja abrindo novos negócios ou investindo no mercado imobiliário – valor que não compra nem uma ânfora rachada no centro histórico. A contar pelo sucedido em Portugal e na Espanha, que abriram as pernas para o dinheiro estrangeiro numa tentativa de salvar a pátria, talvez Roma perca de vez seu escudo natural antigentrificação. Ainda vê-se mais afogatto que avocado pelas mesas, o que é um bom sinal, mas o americano (em forma de gente ou café) já é uma ameaça à sobrevivência do espresso e do ritmo pouco veloz da rotina. Enquanto não houver abacaxi na margherita, a gente segue otimista – pelo menos até a estreia da nova temporada de “Emily in Paris”, que terá Roma como pano de fundo. Ora pro nobis!

When in Rome…

Exibição de fotos de Louis Fratino na Bulla – Foto: Divulgação

Ala D’Amico: “Não deixe de conhecer a Basílica di Santa Cecília in Trastevere, o Parque Caffarella e a Cripta Cappuccini. Se puder, você também pode fazer passeios de um dia até o Jardim de Ninfa, a Necrópole de Banditaccia e a Villa Adriana.”

Ilaria Leoni: “Recomendo o jardim monástico da Basilica di Santa Croce in Gerusalemme e o cemitério não católico de Roma, na Piramide.”

Coletivo Supernova: “Vale conhecer o Teatro Oak na Colina Janiculum, um lugar onde se pode apreciar a cidade, um canto protegido para realmente entender a maravilha que o cerca de maneira simples e discreta.”