Kamili Piccoli – Foto: Reprodução/Instagram/@kamilipiccoli

Essa é uma história que não começou nada feliz – e que tinha tudo para engrossar as estatísticas das narrativas desconcertantes que se amontoam por aí. Nascida em Votorantim, no interior paulista, Kamili Piccoli foi criada por um pai solo. Antes mesmo de completar dez anos, a menina já se aventurava na cozinha, mas bem longe de brincar de fazer comidinhas para as bonecas. Naquele espaço, entre panelas, temperos e algumas ideias, ela descobriu que o ato de alimentar era a melhor forma de demonstrar afeto.

Aos 13 anos, a morte precoce do pai a colocou num universo de medo e de solidão. Para Kamili, a única alternativa era encontrar um lugar de acolhimento. E foi o que ela fez, saiu de casa e percorreu longos caminhos, entre eles o da fome, até conseguir abrigo em um coletivo de arte localizado em Sorocaba (SP).

Foi ali, em meio aos vernissages que rolavam frequentemente, que ela pôde se experimentar para valer na culinária. Vegana desde sempre, Kamili ganhou destaque com suas receitas criativas e saborosas, o que a fizeram tomar a direção do fervor cáustico da Pauliceia.

Se a maioria dos sonhos fracassa em terras insalubres, os dela não apenas se consolidaram como a transformaram em uma das chefs mais interessantes desta geração. A estreia oficial aconteceu timidamente em jantares secretos mensais feitos em sua casa. “Recebia até dez pessoas e servia receitas contemporâneas elaboradas sem nenhum ingrediente de origem animal. Havia cada vez mais gente na lista de espera, e passei a abrir a cada quinze dias.”

Com a demanda aumentando, em 2016, ela percebeu que era o momento de investir em um restaurante nos moldes tradicionais e de fincar raízes. A menina que ficou órfã na adolescência, dormiu sob tantos tetos, sentiu o frio queimar a pele e cismou em acreditar numa fragilidade de Cinderela, finalmente compreendeu o tamanho da sua coragem.

A ascendência italiana, herança materna, serviu de link para a construção do cardápio do restô, idealizado num dos metros quadrados mais cobiçados de São Paulo, no bairro de Pinheiros. Batizado com o próprio sobrenome, Piccoli, o lugar tem décor atraente e intimista, com cozinha à vista dos olhos, pratos pensados com sofisticação e coquetéis autorais. “Foi preciso romper o preconceito que existe com o veganismo, que é tratado como uma gastronomia desinteressante e sem graça”, diz.

Dona de uma beleza hipnótica – evidenciada pelas tatuagens que lhe recobrem o corpo -, Kamili prefere passar despercebida pelos comensais que lotam diariamente os seus negócios, mesmo sendo ela uma mistura acertada de Jackie Kennedy e Anne Hathaway. Aos 26 anos, a empresária venceu os obstáculos, deu olé nas adversidades e hoje comanda um restaurante, dois cafés e uma fábrica de produtos artesanais. “A Piccoli Fattoria é onde a mágica acontece. Ali, são preparados dos cafés aos queijos, risotos, massas, pães, molhos e doces que são consumidos em todos os meus estabelecimentos”, pontua.

É natural que essas conquistas já fossem exibidas como troféus, mas ela avisa que tem outros planos para o futuro. “Quero inaugurar mais um café, alçar voo com a minha expertise em solo norte-americano e criar uma versão pocket do Piccoli Cucina, formatado para os tempos atuais, em que o consumo consciente virou regra.” Como se vê, a “Gata Borralheira”, definitivamente, está no comando.