Foto: Divulgação

Por Manuela Cantuária*

Cresci nos anos noventa e posso dizer que minha primeira inspiração humorística foi a Dercy Gonçalves (1907 – 2008). Eu era uma criança que queria ser igualzinha àquela senhora no auge de seus noventa anos, engraçada como ela e, principalmente, livre como ela.

Só depois eu fui entender por que achava Dercy tão especial. As mulheres precisam enfrentar essa cobrança do tempo em praticamente todas as fases da vida. A sociedade ainda insiste em julgar a gente pela idade. Sempre somos novas demais ou velhas demais para isso ou para aquilo. É uma visão limitada que precisamos combater interna e externamente.

Quantos exemplos extraordinários a gente tem ao nosso redor, principalmente na terceira idade? Em um momento tão vulnerável para essa parcela da população, quem se mantém ativa passa uma mensagem de resistência, de afirmação de vida.

O riso também pode ser um mecanismo de defesa, independentemente da idade. Fazer piadas e permitir-se rir, no meio de uma tragédia em curso, é um desafio para todos nós – não só para humoristas. Existe esse lugar-comum de que o humor aliena ou dessensibiliza o público em relação à gravidade dos fatos, mas me parece justamente o contrário. O humor é um importante aliado, seja como ferramenta crítica, como válvula de escape, ou ambos.

Falar de humor, de forma tão genérica, é complicado, mas dá pra dizer que o objetivo é sempre o mesmo: provocar o riso. Eu já conheci gente que não gosta de açaí, gente que não gosta de transar, mas nunca conheci alguém que não gostasse de rir.

O riso tem esse apelo, esse aspecto terapêutico, e se faz ainda mais necessário em tempos adoecedores. Agora, é claro que não funciona como o meme da Bela Gil: “você pode substituir o choro pelo riso, por exemplo”. Chorar a perda de 140 mil vidas por causa da Covid-19, de 20% da área queimada no Pantanal, é inevitável.

São fatos devastadores, irreversíveis, que a gente precisa processar, não tem jeito. O riso é o que torna essa realidade um pouco mais suportável. Isso sem entrar na questão do humor crítico, que tem um papel social e um potencial transformador muito importante, ainda mais agora, em meio a essa onda conservadora e negacionista.

O humorista Fábio Porchat costuma dizer que “o humor não deveria ter limites, mas o bom senso, sim”. Se tenho dúvidas sobre ter passado dos limites em um texto de humor, não perco tempo analisando a piada, e sim o contexto no qual ela está inserida. É o contexto social que vai me responder se aquela piada é cruel, se é injusta, se reforça estereótipos. Porque quando a piada ataca um grupo que já é vulnerável, ela deixa de ser só uma piada inofensiva, ela se torna parte do problema.

Esse primeiro momento do “humor nos tempos de corona” tem uma estética muito similar à da internet, dos influencers, do YouTube. Na pandemia, até o “Saturday Night Live” foi filmado remotamente. Então tem essa identificação, essa aproximação do público, que acaba entrando na casa dos atores, jornalistas, comediantes etc.

Os influenciadores já faziam isso, então já estavam um passo à frente. Todo mundo, de alguma maneira, precisou se adaptar, mas a internet, para variar, respondeu muito rápido. A parte que eu mais gosto de ver tantos talentos do humor despontando nesse momento é poder acompanhar uma nova geração de mulheres engraçadíssimas, como a Pequena Lo, a Thamirys Borsan, a Livia La Gatto, a Nathália Cruz, a Maria Bopp.

É muito inspirador, ainda mais em uma crise que impacta de maneira mais severa as mulheres do mundo inteiro.

Me parece natural que, em momentos como esse, o consumo de comédias cresça. As pessoas já estão passando por situações dramáticas o suficiente. Muitos perderam pessoas queridas, seus empregos, ou estão isolados, sobrecarregados, ansiosos em relação ao futuro. A ficção acaba se tornando um refúgio, especialmente as comédias, que provocam uma sensação oposta ao noticiário.

Uma matéria do “Washington Post”, por exemplo, relacionou o boom da sitcom “The Office” na pandemia com a nostalgia do público, que sente falta do ambiente de trabalho. Por outro lado, o TikTok ganhou popularidade e até um rival à altura: o Reels, do Instagram.

Em ambos, os pequenos vídeos reproduzem um conteúdo leve, despretensioso, às vezes até nonsense, que se contrapõe a tudo que a gente está vivendo. É uma linguagem que não se pauta pelo excesso de julgamentos que você observa em outras redes sociais, não sofre daquela pressão estética e ética – e até aquele medinho de passar vergonha.

É uma ferramenta que simplifica muito o processo de fazer uma esquete de humor, por exemplo. E qualquer usuário pode fazer sua miniópera de uma pessoa só. Já essa tendência das dancinhas, das dublagens, dos vídeos curtíssimos, acho que sempre existiu, essas plataformas apenas concentraram tudo em um lugar só e popularizaram ainda mais esse tipo de conteúdo.

Com o isolamento social, aí é que fez todo o sentido. As pessoas perderam suas opções de lazer, não têm mais pista de dança, então o jeito é dançar em casa mesmo e exercitar a capacidade de rir de si mesmo, fundamental em tempos sombrios.

* Manuela Cantuária, 33 anos, é roteirista e escritora, trabalha com criação, desenvolvimento e roteiro de projetos para TV, cinema e internet. Faz parte da equipe do Porta dos Fundos e assina uma coluna de humor na Ilustrada, caderno de cultura da Folha de S. Paulo. Está sempre em busca da representação feminina em toda sua imperfeição.