
A atriz Demi Moore em cenas de “A Substância”: filme de Coralie Fargeat questiona a pressão estética pelo corpo jovem e perfeito – Foto: Divulgação
Por Paula Jacob
Se são comentários indevidos vindo de familiares ou anúncios de emagrecimento na mídia, não importa: é impossível ser mulher no mundo e nunca ter tido a experiência de pensar ou, de fato, agir de acordo com o que o sistema prega sobre o corpo feminino. E uma das grandes armadilhas está relacionada ao ideal de juventude, como aponta Naomi Wolf no livro “O Mito da Beleza”. Ao analisar diversas publicidades e reportagens de diferentes veículos norte-americanos, ela conclui, entre outras coisas, que a busca pelo “corpo perfeito” afasta as mulheres umas das outras, ao se verem como rivais em uma corrida imaginária pela pele mais bonita, a barriga mais definida, a cintura mais fina, a bunda mais empinada, o nariz mais arrebitado.
“A competição entre as mulheres foi incorporada ao mito para promover a divisão entre elas”, escreve Wolf. Inveja e rivalidade são sentimentos não só normalizados, mas estimulados nessa lógica. Afinal, sozinha não se organiza uma revolução contra o próprio sistema. É justamente nesse ponto que “A Substância”, premiado filme de Coralie Fargeat, desenvolve uma de suas críticas cruciais: como a solidão dessa mulher cheia de pressões externas e internas causa um sentimento de revolta contra o próprio corpo. Demi Moore é Elizabeth Sparkle, celebridade televisiva de aulas aeróbicas – estilo Jane Fonda nos anos 1980 – demitida do próprio programa por ter chegado aos 50 anos. “Estamos em busca de um jovem talento”, diz o chefe da emissora. Sem entender o que fará da vida, recebe a chance de encontrar a sua “melhor versão”. Um remédio milagroso promete que a matriz (corpo principal) e o other self (corpo secundário) coexistam, sete dias para cada.
Excelente body horror feminista, com relances de ficção científica, o filme traz para o físico as experiências excruciantes de ser colocada de lado caso não responda ao padrão. Essa segunda persona sai, literalmente, do corpo da primeira, rasga a pele, sangra, costura, deforma. A “outra metade” é Sue (Margaret Qualley), garota de maiô cavado, “peitos no lugar” – como dizem os homens que a escolhem – e muito colágeno. Um hit instantâneo, claro. Ela eleva a audiência do canal e ganha uma atenção masculina que, há tempos, não experienciava. Sue é tudo o que Elizabeth jamais voltará a ser, e isso é insuportável. Aí mora uma das armadilhas dessa lógica: a possibilidade do descarte. Sai uma, entra outra e assim segue. Como se corpos femininos fossem produtos passíveis de melhorias para garantir uma existência mais longa na publicidade, no cinema, nas revistas. Caso contrário, thank you, next.
Os primeiros dias de troca de corpo funcionam perfeitamente, mas o vício que a indústria gera nas pessoas pode ser comparado a qualquer outra droga – atenção, promessas, status, dinheiro. Quanto mais, mais. E enquanto Sue está no topo do mundo, Elizabeth fica cada vez mais solitária. Sue desfila seu esbelto corpo de minissaia e cropped nas ruas da Califórnia. Elizabeth se esconde no seu apartamento, afundando na poltrona na frente da TV.
Assusta pelas imagens grotescas, sim, mas, mais do que isso: assombra pela verossimilhança de uma lógica que não envelhece, muda de corpo também. Antes, as cirurgias plásticas e as dietas milagrosas, agora, a normalização do uso do Ozempic e outros remédios sem recomendação médica, para emagrecer a todo custo.
É assertiva também a escolha do elenco. Demi Moore sofre com problemas de autoimagem e precisou ser internada duas vezes, nos anos 1980 e 2010, em espirais autodestrutivas, marcadas por distúrbios alimentares e vícios. Apesar de ter falado abertamente sobre as questões em 2012, a atriz fez procedimentos estéticos que a deixaram irreconhecível na aparição do desfile da Fendi em 2021. Amplamente criticada, ficou afastada das lentes até retornar em 2023 para a série “Feud: Capote vs. The Swans”. Demi encarna a personagem de Fargeat com unhas e dentes, adicionando uma camada importante, inclusive, em como o filme é gravado. Rugas, flacidez e outras características do envelhecimento são protagonistas de takes corajosos.
A presença de Margareth também não é à toa. Aos 29 anos, é um dos rostos “do momento”, com currículo que inclui filmes de Quentin Tarantino a Yorgos Lanthimos. Ela é filha de Andie MacDowell, atriz que já fez inúmeros discursos contra a pressão estética do cinema. Em tempos de corpos magérrimos tomando conta novamente das passarelas, campanhas, redes sociais e almoços entre amigas, “A Substância” se torna um clássico instantâneo. Mostra de maneira radical o quanto a máscara do discurso inclusivo não passava de uma fábula social, na qual os corpos femininos foram (e são), mais uma vez, um experimento da lógica patriarcal-capitalista.