Ruth de Souza – Foto: Divulgação

Como a maioria das meninas da sua geração, a diretora Juliana Vicente sonhava em ser Paquita. Formada em cinema pela FAAP, esse foi o tema de Cores e Botas, seu primeiro curta-metragem com elementos autobiográficos, lançado em 2010. “Quando dizia que meu curta era sobre uma menina preta que queria ser Paquita, todo mundo ria. Isso me dava uma sensação muito doida, de entender porque aquilo provocava risos. As pessoas não achavam necessário falar sobre racismo naquele momento”, conta Juliana, prestes a viajar para o Festial de Cartagena exibir seu curta Terra Nakupa, obra que integrou o premiado Pavilhão Brasileiro na Bienal de Arquitetura de Veneza em 2023. Como a vida dá muitas voltas, apesar de nunca ter ido a uma gravação do Show da Xuxa, no ano passado Juliana acabou aceitando um convite para ser uma das diretoras da novela Terra e Paixão, na Globo. “Quando era criança, o Rio de Janeiro me parecia um lugar muito distante. Foi muito louco quando entrei na Globo, porque aquele era um lugar muito icônico para quem foi fã de Xuxa.”

Filha de pai baiano e mãe paulista, Juliana cresceu em um condomínio fechado e asséptico, em São Paulo, teoricamente protegida do racismo, graças à boa situação econômica da família. Ou pelo menos era isso que seus pais queriam acreditar. “Meu pai veio da Bahia de pau de arara com a família. Morou em um cortiço, e mais tarde, virou empreendedor, trabalhando em construção civil, alugando andaimes. Montou uma empresa que acabou crescendo. Então, eu e meus irmãos fomos os primeiros a estudar em uma escola particular. Mas era um universo muito próprio. Meus pais não fizeram faculdade, nós fomos os primeiros. Eles não sabiam como lidar com o racismo. Acreditavam que estava ligado à questão econômica. E, como criança, você vira a portadora da triste notícia de que não era bem assim, quando volta para casa chorando depois da escola”, desabafa Juliana.

Durante as filmagens de Cores e Botas, Juliana conheceu a atriz Dani Ornellas, que faz a mãe da protagonista. “Ela era muito amiga da Ruth de Souza e me falou que tinha de conhecê-la. E, quando conheci a Ruth, foi um pancadão”. O resultado desse encontro foi o documentário Diálogos com Ruth de Souza, exibido em inúmeros festivais no Brasil e no mundo, pelo qual Juliana venceu o prêmio de melhor direção no Festival do Rio, e que chega no dia 9 deste mês aos cinemas. A protagonista, que faleceu aos 98 anos em 2019, foi uma das grandes damas da dramaturgia brasileira, a primeira estrela negra dos estúdios Vera Cruz, e grande referência entre artistas negros brasileiros, tanto na televisão quanto no teatro. “Ela se parecia muito com a minha avó. Inclusive, começo o filme falando isso. Então, pudemos ter um diálogo que eu nunca tinha tido, porque minha avó morreu quando eu era muito nova. Foi minha primeira oportunidade de trocar com uma preta velha”, conta Juliana.

No filme, Juliana mescla depoimentos gravados na casa da atriz nos seus últimos dez anos de vida, com cenas de ficção sem diálogos, que recriam um mundo mítico e transcendental, inspirado nas religiões afro-brasileiras. “Passei uns cinco anos filmando, sem nenhum tipo de financiamento, porque a Ruth já estava bastante velhinha. Quando aconteceu esse encontro, consegui ver um certo espelhamento entre nós duas”, reflete. As cenas ficcionais foram surgindo ao longo do percurso. “No começo, meu plano era fazer um filme bem mais tradicional. Queria ter vindo com ela aos estúdios da Vera Cruz, encontrado amigos dela nesse universo. Só que a Ruth, ao longo do tempo, foi perdendo a mobilidade. Então, tive que redesenhar o filme”. Terminou as entrevistas e sentiu a necessidade de chegar a lugares que não conseguia acessar – como quando a diretora pergunta a Ruth sobre seu relacionamento com o ator, poeta, ativista, diretor e artista plástico Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental no Negro. “Foi uma intuição. Primeiro chegou essa música da Virgínia Rodrigues, muito importante pra mim. Com a Ruth recitando o poema: ‘para ser lama, é preciso ser lume, sem qualquer vestígio de limo’. Quando ouvi, sonhei com a cena nesse ambiente. E começou a fazer sentido/ Percebi que era desse lugar que viria o diálogo. Foi tipo uma conversa com um Orixá.”

Juliana herdou o empreendedorismo do pai. Sócia-fundadora da produtora Preta Portê Filmes, que completa 15 anos em 2024, foca na criação e impulsionamento de audiovisuais voltados às temáticas preta, indígena e LGBTQIAP+. Para Juliana, diversidade é confluir pensamentos e pessoas de origens distintas, no mesmo lugar. Entre suas principais produções estão o documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo para o Mundo, dirigido pela própria, e a série Afronta! – ambos disponíveis na Netflix. Ainda este ano, a produtora lança a plataforma de streaming Preta Play. “Amo empreender, mas sou uma só. Gosto de criar coisas que não existiam. Inventei um espaço onde é possível apostar em coisas que acreditava. Há ainda tem uma escola, espaço de formação, onde já passaram algumas turmas”, empolga-se. Para completar, é mãe solo de Amora, de quase 3 anos (junho).

Entre os planos, Juliana conta que quer escrever uma novela. “Lugar de contar história, para além de dirigir.” Também está trabalhando no seu primeiro longa de ficção, intitulado Cores de Maio, continuação do curta Cores e Botas, falando sobre essa mesma família. “Será sobre esse universo, falando sobre ascensão, e de como a gente está refletindo isso. Trazendo a espiritualidade para o cotidiano da família preta, apesar de tudo que existe para tirar a gente disso quando você ascende economicamente. Falo muito sobre a minha vida e esse lugar de construção de identidade. Cresci num ambiente asséptico e fico com a sensação de não ter um lugar para onde voltar. A raíz fica diluída. Todo trabalho tem a ver com minha conexão, com a minha raíz. Sem isso, eu não saberia como estaria hoje.”