Por Hermés Galvão
Em 1984, a banda alemã Alphaville fez o Velho Mundo cantar “Forever young, I want to be forever young…” Num tempo em que Berlim ainda era cortada pelo muro que dividiu a capital ao meio a partir do fim da 2ª Guerra, a música tornou-se não apenas o hino da juventude de ambos os lados, mas a voz da resistência e da insistência de uma cidade que sempre brincou de vanguarda. Da coqueluche dos cabarés na década de 1920, quando a androginia andava à solta na Friedrichshain e os gays definitivamente haviam saído do armário e engolido a chave com schnapps de menta, às raves que derreteram de vez a Cortina de Ferro transformando bunkers, hangares e estações subterrâneas em uma grande festa da liberdade…
Desde sempre e para sempre, Berlim foi o kindergarten do hype de cada era, fizesse chuva ou estourasse guerra. Hoje, 35 anos depois do reencontro entre Ocidente e Oriente, quando a globalização e a banalização do turismo andam de mãos dadas para apagar qualquer resquício de originalidade nas ruas cheias e nas mentes vazias, Berlim tenta a todo custo manter-se de pé, à frente de seu tempo e atrás de alguma novidade que refresque seu zeitgeist. Mesmo com a ascensão de uma direita que flerta com o nazismo, com a volta do moralismo de uma sociedade que reprime o próximo por falta de coragem de encontrar o próprio ponto G, a ‘enfant térrible’ germânica, ovelha negra das irmãs Hamburgo e Munique, ainda é o epicentro da modernidade e do desbunde – um lembrete para quem achava que o bairro de Santa Cecília e as late lesbians do circuito Globo-Gero eram o último grito de independência.
De Schöneberg a Kreuzberg, zonas ainda a salvo da gentrificação que capitalizou todo o extinto charme camarada da Mitte e de Prenzlauer Berg, a cidade segue em eterna puberdade cultural, animada por adolescentes de todas as idades, origens, desorientações sexuais e gostos musicais: do mochileiro de Birkenstock ao metaleiro que também é CEO de farmacêutica, do punk ao ploc, do sadomasô ao sei lá onde estou, da hippie que vive de paz e amor graças à mesada do pai empreiteiro, do artista plástico que jura ser comunista e abstracionista por viver num ‘aparelho’ galpão em Spandau e da influencer que até hoje não convenceu a mãe (e o mundo) de que seu Instagram é ferramenta de trabalho. Tem de todos e tudo cabe: às vezes a cena parece vintage, ora démodé, de vez em quando nostálgica e quase sempre dèja-vu para quem passou dos 45. Mas nada disso importa, desde que a sua alma ainda pisque à noite e seu corpo segure um day after da Berghain.
Berlim é um contraste constante por onde quer que se olhe e nada mais natural para uma teenager que renasceu em 1989 ainda querer chocar os caretas e lutar a favor de sua contracultura. Todas as manhãs, um café escondido numa rua com nome trava-línguas serve sua fiel clientela com tudo menos o café – uma tradição que remonta aos tempos de Christiane F., para quem não sabe uma espécie de loira do banheiro da década de 1980 que assombrou crianças viadas com sua trágica biografia regada a drogas pesadas. Pelas ruas e praças, lavabos e onde mais for espaço público, o grafite é um recado à normativa: aqui, é proibido proibir. Nem tudo que se picha é arte, quase tudo tem mais ou menos a cara do que fazíamos no braço engessado de algum coleguinha da escola. E assim, tome desenhos de pênis de muitos tamanhos e modelos diferentes, vaginas cabeludas e dentadas, ofensas ao capitalismo selvagem, mensagens de apoio incondicional à Ucrânia e Palestina, uma bunda enorme na reta de um foguete supersônico desenhado sobre um cartaz anunciando um show de rock independente com deprimidos à la Smiths vestidos de militar e com mullets. Jamais saberemos se se trata de uma banda de agora ou da era de Nina Hagen – na verdade, dá no mesmo.
No contrassenso e na contramão de sua estética, na sua constante transição entre pretérito perfeito e passado remoto, flertando de maneira perigosa com o anacronismo, entre bandeiras de Cuba e filiais da H&M que vendem t-shirts com a fuça de David Bowie, Berlim segue à prova de coerência, sem ter a menor vergonha de ser feia. Sabendo que beleza cansa, tratou de ser inteligente, engraçada, interessante, excêntrica. Compensou a sem-gracice de sua veia germânica com humores e sabores vindos de culturas distantes e distintas (os restaurantes vietnamitas nos salvam das salsichas com curry, os turcos são sorridentes…), mas com uma disciplina quase displicente, que mantém sua rotina prática, funcional e durável – para ilustrar o pensamento, pergunte à sua mãe quanto tempo durou a Brasília dela.
O B de Berlim
Easy Rider
Free Berlin Bike Rental
Se quiser mudar o visual
God Save the Mullet. Lembre-se de que o risco de dar errado é enorme, pois o corte tradicionalmente só funciona para argentinos.
Para uma selfie
Really?
Para desafinar
Karaokê dominical no Mauerpark.
Evite
Falar ao telefone. Alemães odeiam barulho.
Comer
Restaurante Wen Cheng para noodles feitos na hora.
Beber
Bar Café Altes Europa para cervejas que descem como pão.
Arte para entender
Sammlung Boros Art Bunker.
Arte para fingir que entendeu
Köppe Contemporary.
Shopping
A malharia secular Merz b. Schwanen era um ‘segredinho’ bom até um certo influencer ou ator americano postar no Instagram.