
Frankenstein somente compreende que suas feições imperfeitas fazem dele um monstro quando é rejeitado por seu criador. Sua conduta a partir daí garante o sucesso da obra escrita por Mary Shelley há 200 anos. Os questionamentos metafóricos da autora sobre a humanidade caem tão bem no cenário contemporâneo que Miuccia Prada se inspirou no anti-herói duas vezes este ano.
Em janeiro, entre ternos bem cortados para o menswear, ela incluiu 20 vestidos com florais bold conectados a referências vindas do militarismo, traçando uma atmosfera romântica nada convencional. Sombria, quase um sentimento de frio que atravessa a espinha, acabou virando uma coleção inteira feminina, apresentada no mês seguinte, na mesma passarela montada na Fondazione Prada, em Milão.
Famosa por não dar ponto sem nó, a estilista italiana estava interessada em falar sobre o ser humano e suas fraquezas – como insegurança e escuridão –, e o cenário europeu contemporâneo, que não é nada positivo. Ao transportar a história de Shelley para o domínio das mulheres, foi natural que surgisse uma noiva para aquecer o sofrido coração de Frankenstein.

Com cabelos trançados como os da Vandinha da “Família Addams” – a série criada nos anos 1960 chega ao cinema no segundo semestre, em formato de animação –, as modelos mostraram uma coleção híbrida, misturando alfaiataria e couture, masculino e feminino, contos de fadas e punk, uniformes e rendas, botas pesadas e sapatos cobertos de glitter, flores e bolsos utilitários.
Miuccia Prada não está sozinha ao mostrar que a visão romanceada de um mundo perfeito deu lugar a um cenário colérico. De Londres a São Paulo, as marcas têm levado para a passarela neste 2019 discussões sobre as batalhas femininas diárias, sintomas bélicos que tomam conta de várias capitais, atitudes de retrocesso social e críticas a intransigências. Tudo isso sob o guarda-chuva de uma falsa impressão de que uma tendência romântica, com florais e shapes lady like, invade o closet.

Há, no ar, uma visão nostálgica de leveza, inocência e felicidade eclipsada por acontecimentos sociais e políticos. São sonhos distantes capturados também pela antena sensível e realista de Pierpaolo Piccioli. Em parceria com Jun Takahashi, da Undercover, ele criou a estampa do beijo neoclássico do século 19 entrelaçado a uma rosa pop-punk que alinhavou toda a coleção, junto com fragmentos de textos sob influência do Movimento pela Emancipação da Poesia, que, anonimamente, estampa muros ao redor do mundo com um pouco de ternura.

Marc Jacobs transitou entre extremos e delicadeza, investindo em exercícios de volumes e materiais.

Entre vestidos cobertos por uma nuvem de tule preto, lenços finalizados com laços expressivos, bordados e estampas dramáticos, o jovem designer Erdem Moralioglu (Erdem) transformou em moda a vida e o estilo da principessa italiana Orietta Doria Pamphilj (1920–2000), cujo pai foi preso por resistir ao fascismo de Mussolini, para falar de como lidamos com o passado.

Seguindo caminho semelhante, mas dentro de sua pegada autoral, Simone Rocha – outro nome em ascensão – passeou entre a artista plástica Louise Bourgeois e o controverso filme de terror “A Tortura do Medo”, de 1960, em que um psicopata gravava as expressões de terror das mulheres que matava.

Até mesmo Anthony Vaccarello arriscou uma visão particular sobre o tema, com o microvestido de paetês e decote em formato de coração com garras – ou seriam dois felinos espelhados, como se estivessem digladiando?

Outro momento primoroso dos desfiles inverno 2019 foi a coleção da Alexander McQueen. Sarah Burton traduziu a vibe bad romance em uma alfaiataria inventiva, nada fácil, ora flertando com a couture, ora com o movimento punk. Para arrematar, flores modeladas em tecidos preciosos e estampadas. Forte, sensível, inconformista.
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