Marcelo Rubens Paiva no Festival de Cannes – Foto: Getty Images

Com um pouco de exagero e drama, me autodiagnostiquei, anos atrás, com ourakotagkofobia. As fontes na Psicologia não são confiáveis mas, em resumo, é o medo irracional de orangotangos, aqueles primatas ruivos e sabidões da Indonésia. Enquanto me recuso a dar maiores explicações, a confissão de divã faz sentido porque, em 2018, meu entrevistado da vez publicou uma sátira política e social que batizou de “O Orangotango Marxista”. Fiquei (quase) curado! Quem, enfim, pode ter medo de Marcelo Rubens Paiva?

Pergunte a ele (roteirista, escritor, dramaturgo e gaitista, não necessariamente nessa ordem) e a reposta, talvez, inclua os sadomasoquistas “politizados” (cujo fetiche mais conservador é a volta da ditadura militar) e os inimigos da literatura brasileira. No mais, é um sucesso. Tanto, aliás, que Ainda Estou Aqui”, de 2016, virou roteiro para o mais novo filme homônimo de Walter Salles, aclamado em festivais internacionais e que está nos cinemas de todo o País.

A trama autobiográfica revisita as memórias de infância do autor. Sua mãe, Eunice (interpretada por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro), assumiu a liderança da família de cinco filhos – e um papel pioneiro como advogada de Direitos Humanos – depois que o marido, o deputado Rubens Paiva (Selton Mello) foi preso e morto em 1971, no auge do governo de Emílio Médici. Décadas mais tarde, foi acometida pelo Alzheimer, um diagnóstico que inspirou mais um livro do filho.

Com o filme recém lançado, no qual Marcelo atuou como consultor, arranjamos um espaço apropriado na agenda para conversar: domingo de manhã. Na escrita, afinal, “dia útil” é a expressão mais inútil de todas. Aqui, ele fala sobre a rotina com o teclado, seus dramas fora da dramaturgia, um livro inédito sobre paternidade e sua nova era como astro da gaita – sim, é isso mesmo.

Guilherme de Beauharnais – Bom dia, Marcelo! Se não estivéssemos ao telefone, o que você estaria fazendo nesta manhã deprimentemente dominical?

Marcelo Rubens Paiva – Vendo Globo Repórter. Inclusive, é o que estou fazendo agora, no volume baixo da televisão. É o programa que eu mais gosto de assistir. Mas estou com os meus filhos hoje e quero ir com eles à nova exposição do Carlito Carvalhosa, no Instituto Tomie Ohtake.

GDB – Passei o dia de ontem revisitando algumas entrevistas suas… são realmente muitas. Você se cansa de dar entrevistas?

MRP – Canso. Até tento evitar (risos), mas reconheço que é importante. O escritor não gosta de falar da sua obra porque ela fala por si só. Agora, com o novo filme do Walter, as pessoas me perguntam o que eu achei. Assistam, ué! Dar explicações é sempre uma redundância, mas fui obrigado a aprender a dar entrevistas (risos).

GDB – Sinto muito por isso (risos). Nas redes sociais, você se descreve como “roteirista escritor dramaturgo gaitista”. Isso tudo sem nenhuma vírgula! É mesmo nessa ordem?

MRP – Não (risos). Acho que eu colocaria “escritor roteirista dramaturgo gaitista”. Se bem que, de tempos em tempos, a prioridade muda. Tem épocas em que estou mais escritor, cronista, jornalista… Às vezes, estou muito mergulhado no teatro. Também nunca deixei de ser romancista e há momentos em que fico apaixonado por fazer roteiros. Agora, por incrível que pareça, estou mais dedicado a ser gaitista na minha banda. Essa foi uma boa pergunta! (risos) Faltou só o jornalista porque eu não me considero um, apesar de ter tentado.

GDB – O que não deu certo?

MRP – O jornalismo exige uma dedicação que eu não consegui dar, porque sempre tinha um livro, uma peça ou um roteiro sendo escrito. Um jornalista precisa ser 100% jornalista, viver a notícia, ir para a rua, conversar e ligar para as pessoas, ter fontes… Eu não tive essa vocação. Fiz poucas, mas boas, matérias jornalísticas. Meu maior sucesso foram as crônicas, que estão mais próximas da literatura. A vida de redação nunca foi para mim.

GBD – Por quê? Não sabe trabalhar em equipe?

MRP – Não é isso. É que sempre viajei muito. Já fiz matérias com outras pessoas, como o jornalista Claudio Tognolli, que morreu este ano. Mas a maioria…

GBD – Foi no estilo “cavaleiro solitário”.

MRP – Isso. Como jornalista, eu vivia como o escritor que sou, faço a obra e, só depois que ela está pronta, envolvo outras pessoas. O trabalho inicial é sempre solitário. Gosto de estar no meu ambiente secreto.

GDB – Que é…?

MRP – Minha casa. Todos os cantos dela. Escrevo quando estou dormindo, quando acordo no meio da noite, quando enrolo na cama de manhã, quando tomo café na varanda, quando estou no banho…

GDB – Escreve no banho? Como funciona isso?

MRP – É um trabalho de memória. Escrever não é só ficar na frente do teclado de um computador ou de uma máquina de escrever, por mais que eu tenha seis ou sete (risos). É refletir o tempo todo e achar soluções criativas em lugares diferentes. Trabalho em home office desde os anos 1980.

GDB – Pioneiro! (risos) E você não se distrai?

MRP – Não, acredita?

GDB – Difícil. Anota, pelo menos?

MRP – Também não. Não uso cadernos, guardanapos… tenho ideias e obras inteiras na memória. É um HD especial [risos]. Uma vez, ouvi do Antunes Filho [diretor brasileiro] que, se você esquece algo, é porque não era importante.

GDB – O que é mais difícil de escrever: inícios, diálogos, títulos…? Você tem ótimos, aliás. O “Orangotango Marxista” talvez seja o meu favorito (risos).

MRP – Ah! (risos) Título é realmente uma coisa difícil e, às vezes, eu tenho que pedir ajuda. Foi o Luiz Schwarcz (fundador da Companhia das Letras) quem deu o nome de “Ainda Estou Aqui”. Já “Feliz Ano Velho” foi o Caio Graco (editor da Brasiliense). “Malu de Bicicleta” foi meu amigo Mário Bortolotto (ator e dramaturgo) e “A Segunda Vez que Te Conheci” veio de uma amiga que assumiu ser lésbica anos depois que eu a conheci, quando ela se apresentava como hétero. Então, foi, literalmente, a segunda vez. Achei muito engraçado e peguei para mim [risos]. Com “Blecaute”, foi a Denise Del Vecchio (atriz). Enfim, títulos não são fáceis, mas o mais difícil é a conclusão. Será que agora é a hora de acabar? Será que o propósito foi cumprido?

GBD – São ótimas perguntas. Ainda no tema de títulos, você mesmo tem um: Bello. De onde vem esse apelido?

MRP – Da minha época na USP [Universidade São Paulo]. Como sou neto de italianos, me chamavam de Bello. É um carinho e, às vezes, sou até Bellinho (risos).

GBD – Só para íntimos. Que fofo! Falando em intimidade, você nunca ficou receoso em compartilhar suas memórias tão abertamente com o público por meio da literatura?

MRP – Eu sempre soube separar as coisas e minha privacidade é muito garantida. Ninguém entra na minha casa e, quando eu saio na rua, coloco boné e óculos escuros. Ninguém me perturba! (risos) Fiz autobiografias porque aconteceram coisas muito importantes na minha vida, que, às vezes, gostaria até que não tivessem acontecido. Falar sobre o desaparecimento do meu pai, a prisão da minha mãe, a luta contra a ditadura, a vida de um deficiente que quer mostrar que tem vida sexual… tudo isso é uma missão. Agora, no meu livro novo, falo sobre a paternidade depois dos cinquenta anos. Em um momento em que há tanto ódio no mundo, com discussões sobre escola sem partido, eu me sinto levado a escrever sobre esses assuntos.

GBD – Escrever é uma forma de terapia para você?

MRP – Total. É a forma que eu tenho para elaborar tragédias, dilemas, conflitos, separações…

GBD – E você já imaginou que essa terapia seria digna de Oscar?

MRP – Ah! (risos) Não, nunca imaginei. Muito menos que a minha mamãezinha querida seria comentada, admirada e aplaudida no mundo todo. Mas tenho pouca expectativa sobre o Oscar. Sou menos otimista do que as pessoas. Em primeiro lugar, porque o Brasil nunca ganhou um Oscar de filme estrangeiro. Estatisticamente, as chances são muito pequenas, ainda que elas existam para serem quebradas. Além disso, o lobby de Hollywood é muito forte. Nicole Kidman, Demi Moore, Angelina Jolie… se a Fernandinha [Torres] for indicada, já será uma grande vitória. Ela mesma diz que, se vier a indicação, já podemos abrir o champagne (risos). Mas quem acompanha o cinema alternativo sabe que a qualidade dos filmes do Brasil, México, Chile, Argentina, Itália, Alemanha, França, Espanha,
Rússia, Irã, Israel, Japão, Hong Kong, China… é de altíssimo nível.

GBD – A esperança é a última que morre!

MRP – É a nossa síndrome de Ayrton Senna. Sempre precisamos de um Brasil-sil-sil… [risos]

GBD – Ai, ai, ai. Você vê algo de comum entre a sua mãe, a Fernanda Torres e a Fernanda Montenegro?

MRP – Não, nada. Tirando a idade da Fernanda Montenegro, que é a mesma da minha mãe [risos].

GBD – Falemos de paternidade, o tema do seu próximo livro. Como a perda do seu pai o afetou?

MRP – Perder um pai é perder uma referência, especialmente no mundo masculino. Mas isso não foi muito grave porque encontrei isso com amigos, tios, primos. Para os meus filhos, tento ser o pai e companheiro que eu não tive, que dá força, amor… na minha época, não era assim.

GBD – Por outro lado, você disse uma vez que a sua mãe é a “heroína da história da sua família”. Isso mudou de alguma forma depois do diagnóstico de Alzheimer?

MRP – Não, não mudou. Mas passei a entender o real valor e importância dela depois que virei pai. Já acho difícil ter dois filhos, imagine ela, que teve cinco sendo viúva de um desaparecido político. O livro “Ainda Estou Aqui” nasceu quando vi essa mulher incrível perdendo a memória enquanto eu construía outras.

GBD – É uma ironia cruel. Seu trabalho depende da memória. Não tem medo de um diagnóstico parecido?

MRP – Eu não vou ter Alzheimer porque a minha memória está intacta. Minhas irmãs têm medo, mas ninguém sabe ainda se é uma questão genética. As demências estão virando uma epidemia. Tem gente que acha que é pelo envelhecimento, pelo plástico, pelo alumínio… Eu tenho medo de ter um AVC, mas acho que não vai acontecer porque sempre nadei muito. Na infância, a natação virou uma obrigação porque eu tinha bronquite alérgica. Depois, se tornou um vício porque eu era surfista. Quando fiquei deficiente, precisei continuar nadando para ter condições pulmonares para sobreviver. Até hoje, nado três vezes por semana. Meu corpo é muito oxigenado.

GBD – Mas você não se estressa?

MRP – Eu não. Trabalho de casa, não pego trânsito, não como comida processada, não tenho chefes autoritários e abusivos. Se eu for abusado, eu caio fora [risos].

GBD – Você é bem engajado nas redes e já até se descreveu como “militante de teclado”. O que isso quer dizer?

MRP – Eu sou ativista do Twitter, né? (risos) Contesto aquilo que está incorreto, mostro os absurdos, coisas engraçadas… É o mínimo! O Twitter é meu instrumento de repercussão. Já o Instagram é onde mostro minha banda.

GBD – Ah, sim, seu lado gaitista! (risos) Fale mais sobre isso?

MRP – Sempre fui muito ligado à música. Já estudei violão clássico, compus, toquei em festivais, fiz shows universitários… Quando meu filho ganhou uma gaita, percebi que eu conseguia tocar. Aí, voltou toda a minha paixão adormecida pela teoria musical. Toco um pouco todo dia.

GBD – Haja tempo! Você também lê diariamente, não?

MRP – Três ou quatro jornais por dia, mas não todas as páginas [risos]. E tento ler um livro por semana. O último foi “Água Turva”, da Morgana Kretzmann. Agora, estou lendo “No Direction Home”, a biografia do Bob Dylan pelo Robert Shelton. Escuto podcasts também.

GBD – Recentemente, uma amiga de 62 anos me disse que já estava na última fase da vida. O que você acha disso?

MRP – Sessenta e dois ainda não é a última fase. Ainda tenho os 70 e os 80. (risos) Por enquanto, sigo buscando coisas novas… projetos, livros, roteiros, shows. Talvez, aos 80, eu comece a ficar com mais preguiça de tantas aventuras. Acho que já falamos tudo, né? Estou ficando meio cansado…