Nalimo – Foto: Divulgação

Por Sylvain Justum

A pandemia balançou o cenário internacional da moda, não apenas por suspender desfiles presenciais e turbinar as produções digitais como forma de apresentar coleções, mas também porque motivou considerações sobre o que e como consumimos, quais os impactos que causamos ao planeta e qual o valor cultural que podem ter, por exemplo, os contestados desfiles-destinos, categoria que inclui as apresentações de resort (ou cruise), geralmente realizadas em locações fora do circuito convencional.

Az Marias – Foto: Divulgação

Após a reabertura das fronteiras e a volta das viagens, elas foram reativadas e, com o upcycling ganhando força como solução para o descarte de cenários e artigos não vendidos, conseguimos focar em uma das principais virtudes desses eventos: a visibilidade para diferentes culturas e suas riquezas. Incentivar a mão de obra local, homenagear os costumes alheios sem apropriar-se deles e deixar um legado para a economia da região entraram no manual de boas práticas para grandes casas de moda que desejem seguir com o formato. Transportar um grande público para um destino e depois sair sem beneficiar a população anfitriã é cada vez mais questionável. Sim, “the eye has to travel”, já dizia Diana Vreeland, mas com que propósito?

Dior – Foto: Divulgação

Peguemos o exemplo da Dior, de Maria Grazia Chiuri, que mergulhou na pesquisa das tradições, artesanato, histórias e heroínas da Andaluzia, região no sul da Espanha na qual está Sevilha, cidade que recebeu o último desfile de Cruise da maison francesa. Mais do que prestar homenagem à cultura local com a apresentação de uma dançarina de flamenco, rendas, boleros, arabescos e babados nos looks superfemininos, o grande mérito da bela coleção foi ter privilegiado o savoir-faire de artesãos nativos na confecção de boa parte das roupas.

Dendezeiro – Foto: Divulgação

Maria Grazia bateu perna em toda a região nos meses que antecederam o desfile para estabelecer relacionamentos com os fabricantes. Os chapéus, assinados por Stephen Jones e inspirados em fotos da duquesa de Alba cavalgando com Jackie Kennedy, foram feitos pelo ateliê Fernandez Y Roche; os xales com franjas e bordados, por Maria José Sanchez Espinar; e teve até uma reinterpretação da Saddle Bag em colaboração com o artesão Javier Menacho Guisado.

Meninos Rei – Foto: Divulgação

“Ah, mas não é apropriação cultural?”, você me perguntaria. Poderia ser, se o desfile tivesse acontecido em Paris e não houvesse nenhuma mão espanhola envolvida na produção das peças. Mas não só. Apropriação cultural é adotar elementos de uma cultura da qual você não faz parte, envolvendo uma relação de poder. É como botar um cocar fabricado por brancos na cabeça da modelo branca e loira, entende? O que um dia foi normal, hoje é inadmissível. E quem melhor do que o trabalhador de determinada etnia, cultura ou região para traduzir e aplicar as referências de uma coleção? Contribuir para a economia local em um mundo globalizado é o “novo normal”, enquanto o (ainda) onipresente “made in China” resiste como “velho normal”.

Monica Anjos – Foto: Divulgação

No Brasil, é com a preciosa participação de trabalhadoras locais que, muitas vezes, saem os resultados mais lindos e autênticos da moda nacional. A renda feita à mão pelas artesãs do Nordeste, por exemplo, é um patrimônio a ser valorizado. É a nossa couture!

Martha Medeiros – Foto: Divulgação

Que o diga Martha Medeiros, que fez sua estreia no São Paulo Fashion Week, em junho, com um desfile-retrospectiva de sua marca, referência em bordado e renda de Alagoas. Martha mantém uma relação próxima com as rendeiras através do Projeto Olhar do Sertão, do Instituto Martha Medeiros, dividida em duas partes bem distintas: uma mercadológica, em que o trabalho remunerado e a política de metas permitem que elas superem o ganho financeiro de acordo com a produtividade. A outra é assistencial, levando auxílio em áreas como educação e saúde. Martha resgatou uma tradição destinada a desaparecer e, hoje, essas mulheres veem suas vidas transformadas pela arte de fazer renda. É sobre respeito, transparência e humanidade.

Santa Resistência – Foto: Divulgação