Marc Bohan, diretor criativo da Dior, em 1964 (Foto: Getty Images)

Se, em 1987, Marc Bohan dedicou sua coleção de alta-costura à Christian Dior, fundador da maison quarenta anos antes, por onde andam as homenagens a ele? Na maison, é claro, há muito o que celebrar antes e depois das quase três décadas em que foi diretor criativo, entre 1961 e 1989. O New Look e os perfumes de Christian Dior, a alta-costura rebelde e luxuosa de Yves Saint Laurent, a extravagância italiana de Gianfranco Ferré e sua icônica bolsa Lady Dior, a teatralidade de John Galliano, a elegância belga de Raf Simons e o feminismo de Maria Grazia Chiuri, primeira mulher a assumir o comando na marca… Não fosse Bohan, porém, faltariam no imaginário de moda da Dior pilares como o prêt-à-porter, a Baby Dior, a estampa Oblique (os três lançados no mesmo ano, 1967) e até a linha masculina da casa, hoje assinada por Kim Jones.

Leia também: Novo livro resgata 30 anos de legado de Marc Bohan na Dior

A morte de Marc Bohan, aos 97 anos, na última quarta-feira (06.09), demorou para ser anunciada. Foram quase quarenta e oito horas até a notícia alcançar os fashionistas que, nos últimos 34 anos, parecem ter esquecido do homem que revolucionou a Dior. Ou, talvez, apenas pendurado seu mito no cabide, tirando-o do armário vez ou outra para colocar nas passarelas. É o caso da coleção de primavera-verão 2022 de Chiuri, que resgatou o Slim Dress do estilista (com o qual ele debutou na marca, em 1961) e do desfile masculino de primavera-verão 2024 de Jones, em que modelos surgiram do chão e cruzaram a passarela com designs em ode ao legado do designer lendário.

Marc Bohan nos ateliês Dior em 1987 (Foto: Getty Images)

Mas se, em 2023, Marc Bohan não virou hashtag nas redes sociais ou tendência no Tik Tok, seu reinado chez Dior não passou despercebido aos contemporâneos. Ao contrário, deixou marcas profundas que, ainda hoje, são sentidas nos detalhes. Mais do que só na maison francesa, aliás, a história do estilista surge costurada com muitas mais outras que marcaram o século passado.

Bohan antes de Marc

Nascido Roger Maurice Louis Bohan em 22 de agosto de 1926, em Verrières-le-Buisson, Marc, como ficou conhecido mais tarde, era o filho mais velho de uma mãe chapeleira e um pai da imprensa. Na infância, foi próximo da avó materna e da madrinha, aficionada por revistas de moda, com quem criou as primeiras opiniões sobre estilo. A paixão se desenvolveu durante a Ocupação Nazista na Segunda Guerra Mundial, quando ia, aos finais de semana, para o cinema em Paris assistir aos figurinos luxuosos de atrizes francesas e alemãs.

Marc Bohan nos ateliês Dior, em 1980 (Foto: Getty Images)

O primeiro trabalho não foi na moda, mas no banco parisiense L’Ouest, de onde escapava, nas horas de almoço, para passear entre a Place Vendôme e Rue de la Paix, endereço de ateliês de alta-costura como Schiaparelli, Madame Grès, Madame Carven, Bruyères e, sua favorita, Jeanne Paquin.

Foi no ateliê de madame Paquin, à época comandado por Antonio Castillo (futuro diretor criativo da Lanvin), que Bohan assistiu ao seu primeiro desfile de alta-costura. Em 1945, também frequentou uma das apresentações de Christian Dior, ainda designer na maison de Lucien Lelong, o presidente da Câmara Sindical de Alta-Costura que, inspirado pela paixão do jovem bancário, arranjou um emprego para ele na Patou.

Robert Piguet, aqui em 1946, foi um dos maiores estilistas do século 20 e serviu como mestre de Pierre Balmain, Hubert de Givenchy, Christian Dior e Marc Bohan. Foi Piguet quem pediu para o jovem Roger Bohan trocar de nome, se tornando Marc. (Foto: Getty Images)

Ainda que o sonho de Bohan fosse trabalhar para Robert Piguet, um dos principais costureiros da época, foi convencido pela mãe a aceitar a oportunidade. Ficou lá durante nove meses, antes de conquistar o lugar desejado chez Piguet, com quem aprendeu os fundamentos da moda e a importância de tecidos bem cortados. No ateliê do mestre, em 1946, foi rebatizado pelas amigas modelos para Marc (o diretor financeiro da casa já se chamava Roger), uma decisão que, anos depois, ele se arrependeu, tendo confessado que teria preferido usar um de seus nomes já existentes, Louis. Lá, como desenhista de croquis, conquistou seus primeiros sucessos na moda, além de fazer amizade com Hubert de Givenchy, que partiu pouco depois para trabalhar com Lelong antes de abrir seu próprio estúdio.

Marc Bohan antes de Dior

No fim da década de 1940, Marc Bohan deixou os ateliês de Piguet para servir no exército e, quando voltou, encontrou a vaga preenchida. Com a ajuda do antigo mentor, conquistou uma vaga na casa de Edward Molyneaux, onde ficou até ser contratado, em 1951, pela couturière Madeleine de Rauch. Desestimulado pela moda, que considerava antiquada, decidiu inaugurar sua própria maison de haute couture. Como assistente, encontrou Gérard Pipart que, anos mais tarde, se tornou diretor criativo da Chloé e Nina Ricci.

A empreitada teve sucesso temporário. Sua primeira coleção, Parisienne 1954, foi uma homenagem a Robert Piguet, falecido cinco meses antes. Apesar da aclamação por parte da imprensa, Bohan encerrou as atividades ainda no ano seguinte e, com a ajuda de Raymond Barbas, novo presidente da Câmara Sindical, retornou para a maison Patou, agora como diretor criativo. Durante os três anos seguintes, Bohan desenvolveu o estilo fluido e ajustado que, na Dior, seria sua assinatura.

Yves Saint Laurent, predecessor de Marc Bohan na Dior, com as modelos da marca, em 1960. (Foto: Getty Images)

Com o reconhecimento que conquistou na capital francesa, decidiu, em 1957, tentar um trabalho na Dior, fundada 10 anos antes e já estabelecida como a marca de moda mais prestigiada internacionalmente. Apesar de acreditar no talento de Bohan, Christian Dior ofereceu o comando menos glamoroso da Dior em Nova York, cargo que o estilista demorou a aceitar. Quando finalmente decidiu assinar o contrato, em outubro de 1958, Dior faleceu aos 52 anos, deixando o comando de sua maison para o assistente, Yves Saint Laurent.

Leia também: Como a Harper’s Bazaar transformou Yves Saint Laurent em um ícone da moda

Nos dois anos posteriores, Bohan viveu entre Nova York e Londres, para onde foi enviado a fins de liderar as operações Dior no Reino Unido. Descontente, esteve prestes a quebrar o contrato e voltar para Paris, onde assumiria como diretor da nova linha de alta-costura da Révillon Frères, quando Saint Laurent foi enviado para o serviço militar e Marcel Boussac, proprietário da Dior, chamou Bohan para assumir a posição. Ele tinha 34 anos.

Christian Dior, outono-inverno 1963, criado por Marc Bohan (Foto: Getty Images)

A primeira coleção para Dior

Quando Marc Bohan estreou na Dior com sua coleção de primavera-verão 1961, encontrou uma maison de contrastes. Se, por um lado, a casa de moda tinha mais de 300 funcionários em Paris e era responsável por 55% da exportação da couture francesa, também era uma marca jovem, com apenas 14 anos no mercado e 28 coleções. Para o novo diretor criativo, isso significou a liberdade de explorar novas silhuetas e aquecer as ideias que desenvolveu em seus anos na Patou.

Marc Bohan e modelos Dior, em 1961 (Foto: Getty Images)

Batizado de Slim Dress, o primeiro desfile, com formas fluidas e retas foi aclamado pela crítica e clientes, incluindo a Duquesa de Windsor, que liderou os aplausos. Na moda de Bohan, que ganhou o apelido de “anti-herói da Avenue Montaigne” (avenida parisiense onde ficam os ateliês Dior), o conceito das roupas seguia o conforto, jovialidade e feminilidade da mulher, sem as cinturas espartilhadas que Christian Dior havia instituído em sua era, ou a rebeldia beatnik chocante de Yves Saint Laurent. Nos 29 anos seguintes em que liderou a casa, foram esses os preceitos que Bohan seguiu, repetindo constantemente a frase: “Não esqueça a mulher”.

Christian Dior, outono-inverno 1977-1978, criado por Marc Bohan (Foto: Getty Images)

Os anos de revolução: ready-to-wear, Baby Dior, Oblique e Dior Men

Para além da alta-costura que fez de Bohan um expoente em sua época, o estilista estabeleceu pilares da marca que ressoam ainda hoje com a moda. Três deles surgiram ainda em 1967: a primeira linha de prêt-à-porter da Dior (com designs mais acessíveis, supervisionados pelo assistente Philippe Guibourgé), o lançamento da Baby Dior (inspirada na filha de Bohan, Maria-Anne, e cuja primeira patrona foi a princesa Grace Kelly de Mônaco) e a icônica estampa Oblique, que debutou em uma das bolsas na coleção de alta-costura.

O estilista Marc Bohan em 1958, com sua filha, Maria-Anne, que inspirou a criação da Baby Dior, em 1967 (Foto: Getty Images)

Em 1970, foi a vez da estreia da Dior Monsieur, divisão masculina da maison que, quatro anos depois de sua fundação, ganhou uma boutique repaginada e coberta na padronagem Oblique.

A boutique da Dior masculina, em 1974, coberta com a padronagem Oblique. Ambas as ideias (estampa e a linha para homens) foram ideias de Marc Bohan (Foto: Divulgação/Christian Dior)

As clientes: realeza e celebridades

Nas quase três décadas em que comandou a Dior, Marc Bohan acumulou uma lista de clientes fiéis invejável para a concorrência. Já na primeira coleção que criou para a casa, a atriz Elizabeth Taylor encomendou 12 modelos. Um deles, Soirée à Rio (uma homenagem ao Rio de Janeiro), foi usado pela estrela de Hollywood para a cerimônia do Oscar em 1961, em que ela ganhou o prêmio de Melhor Atriz por seu papel em Butterfield 8. Outro, Miss Dior, foi eleito por Liz para o Festival de Cinema de Moscou, na Rússia, em que a italiana Gina Lollobrigida apareceu com o mesmo modelo. Anos mais tarde, Marc Bohan, em um comentário bem-humorado, revelou que o vestido de Lollobrigida era, na verdade, um fake, reproduzido por ateliês na Itália.

Elizabeth Taylor com o vestido Soirée à Rio, criado por Marc Bohan para a Dior, no Oscar de 1961, em que ela venceu o prêmio de Melhor Atriz (Foto: Getty Images)

Jackie Kennedy foi outra cliente de peso na carreira de Bohan, tendo encomendado o casado Vie en Rose para sua viagem à Venezuela, em 1961, e outro conjunto vermelho, que vestiu no seu histórico tour televisionado pela Casa Branca, no ano seguinte. Por motivos diplomáticos, a primeira-dama não podia usar etiquetas francesas, então seus vestidos Dior eram criados, de maneira autorizada, por estúdios estadunidenses, como Chez Ninon e o de Oleg Cassini.

Leia também: Como a Harper’s Bazaar transformou Jackie Kennedy em um ícone da moda

Gina Lollobrigida e Elizabeth Taylor no Festival de Cinema de Moscou, em 1961. Ambas as atrizes estava com o vestido Miss Dior, criado por Marc Bohan, mas a versão da estrela italiana era uma cópia falsificada (Foto: Getty Images)

No meio da realeza internacional, o diretor criativo também foi favorito de aristocratas. Além da princesa Grace de Mônaco, sua filha, Caroline, escolheu Bohan para criar seu vestido de noiva, em 1986, para o seu casamento com Philippe Junot. A meio-brasileira Silvia Sommerlath também casou de Dior, em 1976, com o rei da Suécia, e, quase uma década antes, o estilista criou o vestido de coroação da Imperatriz do Irã, Farah Diba.

Marc Bohan depois de Dior

A parceira de Marc Bohan e a Dior chegou ao fim, depois de quase 30 anos, em 1989. No final da década, a empresa dona da maison, Agache-Willot-Boussac, estava próxima da falência e vendeu suas propriedades para o empresário Bernard Arnault e seu conglomerado de luxo, LVMH. A saída do designer foi sucedida pela chegada, em maio de 1989, do italiano Gianfranco Ferré.

Depois da Dior, Bohan voltou para Londres, onde assumiu a decadente Norman Hartnell (famosa pelos clientes da realeza britânica nas décadas anteriores) antes de aposentar definitivamente em 1992. Sua partida da moda o levou para Châtillon-sur-Seine, no sudeste da França, onde ele faleceu aos 97 anos, em 6 de outubro de 2023.

Marc Bohan com seus sucessores, Gianfranco Ferré e John Galliano, nas comemorações dos 50 anos da Dior, em 1996 (Foto: Getty Images)

Apesar da vida discreta que levou nas três décadas seguintes, Marc Bohan foi tema de uma exposição solo no Musée Dior, em Granville, em 2009. Seu legado continuou a ser eternizado em 2018, com um livro publicado pela Assouline dedicado à sua era lendária na Dior.